A goiaba da fé e a arapuca da esquerda

A goiaba da fé e a arapuca da esquerda

No caso que viralizou a ministra Damares Alves, é interessante notar o que faz uma religião respeitar a outra.
Damares Regina Alves, futura ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, no CCBB, onde está montado o gabinete de transição Foto: Jorge William / Agência O Globo
Damares Regina Alves, futura ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, no CCBB, onde está montado o gabinete de transição Foto: Jorge William / Agência O Globo

Se você leu algo sobre “Jesus num pé de goiaba”, saiba que está no meio de um assunto de Estado. A internet multiplicou piadas sobre declaração de Damares Alves: a futura ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos disse ter escalado uma goiabeira para se matar aos 10 anos e foi impedida porque, lá do alto, viu o Messias se aproximar da mirtácea.

Depois ficou claro que Damares se assume como vítima de pedofilia e que quis se matar por isso. Aí o arrependimento cobriu as redes sociais — a troça tinha saído pela culatra. No campeonato de virtudes que a esquerda identitária promove, dedos foram apontados, e alguns se encontram hoje perto do rebaixamento.

Não fiz qualquer piada, mas, confesso, ri de algumas. Do que achei graça? De imaginar um personagem tão médio-oriental trepado numa árvore batizada em língua ameríndia. Desperta certo humor autodepreciativo, típico da percepção de que o Brasil é periférico e atrasado. Acrescento que, no caldo de nossa língua maciçamente europeia, as palavras ameríndias soam sempre entre o engraçado e o desengonçado. “Goiaba” não é uma palavra elegante, embora definitivamente gostosa, como escreveu o poeta Chacal. Duvido que Jesus desprezasse uma goiaba carnudinha, apanhada diretamente de seu tronco descascável, caso a fruta desse em Cafarnaum.

Fora isso, é interessante notar o que faz uma religião respeitar a outra. Combinada a um rampante conservadorismo evangélico, que torna Damares inimiga de qualquer política pública pró-aborto, a experiência religiosa dela foi precisamente o que a tornou chacota. Claro, porque o outro motivo para rir da piada é uma soma de dois preconceitos pós-modernos: o primeiro, com uma crença, o segundo, com os crentes. Uma visão contemporânea do Cristo é, para essas pessoas, a goiaba da fé. Há visões bem mais elegantes entre o que se entende como progressismo, que levam a comportamentos e conversões bem mais hypados.

(Enfim, todo mundo encontra a religião que lhe cabe procurar.)

Damares não escondeu suas dores de infância em entrevistas e até lançará um livro sobre sua cristofania. Por tudo isso e por ser figura evangélica proeminente em Brasília, é previsível que tenha se apoderado dessa dor — qualquer um que tenha presenciado um culto neopentecostal percebe que o depoimento pessoal sobre os sofrimentos passados é indispensável.

O testemunho, porém, não acaba num relato de dor à espera de acolhimento. Ao contrário, centra-se numa ideia de que a pessoa aceitou Jesus e de que, por intermédio dele, triunfou. Damares diz que não se sentiu ofendida pela profusão de memes, e eu acredito nela, porque certamente repetiu sua história em conversas e púlpitos. Hoje, é tão dona dessa história quanto a comediante Hannah Gadsby sonhava ser quando gravou Nanette , incensado stand-up feminista da Netflix.

Sua revelada condição de vítima, porém, a sacralizou perante a esquerda que policia o humor e o discurso. Foi um xeque-mate: muitos dos que fizeram piadas voltaram ao Facebook para acenar virtude, apagando posts e pedindo desculpas, mesmo não tendo feito piada do abuso, e sim, da cristofania. A maioria dos que fizeram graça certamente ignorava os motivos que levaram Damares ao pé de goiaba, mas se envergonharam mesmo assim. Pior, tratarão Damares como a coitadinha que ela certamente não é, e confundirão o que é pessoal com o que é político. Afinal, “quem faz piada de uma, faz piada de todas”, diz um dos mandamentos não escritos dessa religião pós-cristã, em que tudo é lido de forma totalitária, o que entope a válvula de escape do humor.

Acabaram presos na arapuca identitária: Bolsonaro pôs uma “oprimida” no ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. As piadas, essas perderam a graça, e o que resta é patrulhar uns aos outros.

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