Meu cérebro me fez montar um esquema Ponzi

Meu cérebro me fez montar um esquema Ponzi

Pesquisadores querem encontrar biomarcadores para crimes violentos. Mas e os crimes de colarinho-branco?

POR HAZEM ZOHNY, SLATE; TRADUÇÃO DE MARIANA NÂNTUA
13/06/2018 – 08h00 – Atualizado 13/06/2018 12h25
Slate_EsquemaPonzi_dentro (Foto: Slate)

Em 2000, um homem conhecido apenas como Sr. Oft começou a debater-se contra uma constatação terrível: ele estava virando um pedófilo. De fato, não demorou muito até ser acusado de abuso sexual de menor. Mas, um dia antes de começar a sentença, sua cabeça parecia que ia explodir e, depois de alguns exames, foi encontrado um tumor do tamanho de um ovo abrindo caminho em seu cérebro.

O tumor foi removido e, com ele, se foram os impulsos sexuais indesejados. Um ano depois, no entanto, eles ressurgiram, e novas tomografias revelaram que o tumor também havia voltado. Mais uma vez, foi extraído, e os impulsos partiram de vez, de acordo com um estudo de caso publicado em 2003, na revista JAMA Neurology.

 

A história do Sr. Oft resume bem o argumento foi-meu-cérebro-que-mandou. Essa defesa vem sendo usada nas últimas décadas por indivíduos condenados por homicídio, desde contadores que estrangularam suas esposas até psicopatas que fugiram da prisão; utilizam-se de anormalidades encontradas em exames neurológicos na esperança de uma punição mais leve. Circuitos defeituosos do cérebro não são os únicos: em 2009, um tribunal na Itália diminuiu um ano da sentença de um assassino porque ele carregava genes associados à violência.

A legitimidade de apelar para “biologia ruim” é, no mínimo, controversa. Mas traz uma dúvida, que talvez soe sinistra: se peculiaridades de nossa biologia podem ser nossos álibis, será que também podem ser usadas para prever a probabilidade de alguém cometer um crime – no caso, antes de ele ser cometido?

Esta é a ideia por trás do uso da “bioprediction” (bioprevisão, em tradução livre) para melhorar a prevenção de crimes. Se você carrega um biomarcador – um indicador no cérebro ou nos genes, por exemplo – associado a uma certa predisposição para cometer infrações, medidas podem ser tomadas para manter você na linha.

Imagine que você descobriu que seu filho carrega uma variante genética específica chamada MAOA. Por si só, não é algo fora do comum, mas evidências indicam que, se ele sofrer abusos na infância, as chances de se tornar violento e negligente ao crescer são significativamente maiores. Por conta disso, um pediatra pode recomendar psicoterapia preventiva ou algo mais draconiano: talvez chame um assistente social para se certificar que a criança não está sendo maltratada.

Mas a bioprevisão também pode ser usada de maneira mais abrupta. Digamos que você esteja preso e tenha feito um pedido de liberdade condicional. Seguindo o teste de um estudo, você fica frente a uma tela que mostra repetidas vezes, em flashes, a letra X e, às vezes, a letra K. Você deve pressionar um botão quando vê um X, mas não um K. Enquanto isso, examinam seu cérebro, procurando por um padrão específico. Se aparece, má notícia: você tem o dobro de chance, comparado com outros presos, de reincidência em até quatro anos. Liberdade condicional rejeitada.

É fácil perceber que a bioprevisão, assim como outras tecnologias desse tipo, pode ser usada para fins políticos execráveis. Mas, se a ciência estiver correta – e ainda estamos bem no começo –, também pode prever crimes de forma muito mais justa e eficaz. Afinal, atualmente a liberdade condicional parece ser concedida levando em conta, entre outras coisas, a fome do juiz. Em comparação, psicoterapia e assistência social para proteção de crianças com predisposição para violência caso sofra abusos não é muito Black Mirror.

 

Ainda assim, há um aspecto meio tolo na atual busca científica por esses fatores de risco biológicos: presume, erroneamente, que aqueles que mais deveríamos temer são os assassinos e estupradores, os perturbados e descontrolados. Não chega a ser surpreendente o fato de que os biomarcadores pesquisados neste campo estão constantemente relacionados, de alguma forma, a agressão, impulsos, desvios sexuais e dependência de drogas. Ignoram-se os criminosos que geralmente usam ternos e estão sob total controle – deles mesmos e, muitas vezes, de organizações grandes e poderosas. São os chamados criminosos de colarinho-branco, que, diferentemente de assassinos e pedófilos, costumam ser bons vizinhos.

Mas crimes de colarinho-branco – como de laboratórios farmacêuticos que ocultam descobertas preocupantes sobre seus produtos, fabricantes de automóveis que trapaceiam em testes de emissão ou regimes cleptocráticos que desviam bilhões dos cofres públicos – custam muito mais do que os convencionais em termos de dinheiro, saúde e vidas. Esse cálculo é complicado, mas fontes oficiais estimam que seja 50 vezes mais caro e 13 vezes mais fatal. No Reino Unido, por exemplo, enquanto crimes violentos custam cerca de 124 bilhões de libras por ano – incluindo gastos com investigações policiais, tribunais, prisões e perda de produtividade –, fraudes, por si só, custam aproximadamente 190 bilhões de libras por ano.

Prevenir esse tipo de crime não é fácil – exige uma mudança nas estruturas de incentivo e processos burocráticos das instituições, não a condução de uma análise biológica naqueles que trabalham dentro delas. Ainda assim, a bioprevisão pode desempenhar um papel particularmente útil nesse ramo, auxiliando na avaliação daqueles que disputam as posições mais poderosas da sociedade, e portanto as mais potencialmente perigosas.

Imagine o “psicopata corporativo”. Ele é um indivíduo que não nutre sentimentos de empatia, culpa e remorso e também consegue manipular outros com seu charme e poder de persuasão, a fim de alcançar seus próprios interesses egocêntricos. Ao contrário do psicopata clínico, o corporativo não é necessariamente dado a impulsos ou acessos violentos e antissociais. Na verdade, em entrevistas feitas para identificar a psicopatia, esse tipo relativamente inteligente consegue esconder bem sua natureza.

Aliás, indícios afirmam que essas pessoas são, em particular, atraídas por organizações grandes e influentes; de fato há uma grande parte delas entre os profissionais corporativos. Embora pesquisas nesse ramo sejam escassas, é de se esperar que seja parecido na política pelas mesmas razões: uma vez que o psicopata corporativo alcança o topo de uma organização poderosa, ele se encontra numa posição excelente para buscar seus objetivos egoístas sem obstáculos, enquanto manipula o ambiente a seu redor para normalizar comportamentos duvidosos que colegas não psicopatas, em contrapartida, podem temer.

Existem indicadores biológicos que ajudariam a identificar esses indivíduos? A correlações neurológicas para psicopatia estão aos poucos sendo mapeadas, assim como as bases genéticas dos indivíduos com traços de insensibilidade e afetividade restrita. Até traços como o narcisismo podem ter correlações hormonais.

 

Juntando tudo isso, não é impossível identificar, através de indicadores biológicos específicos, essas pessoas, de certa forma, charmosas, mas antes a ciência precisa se interessar mais por crimes de colarinho-branco e entender melhor os fatores de risco relevantes.

É claro que precisamos questionar como isso seria implementado – e por quem. Dificilmente um conselho de diretores irá pedir que candidatos a CEO façam um teste genético ou uma tomografia do cérebro. No entanto, é possível que as próprias corporações defendam esse critério de avaliação: afinal, líderes com traços de psicopatia, como era de se esperar, reduzem a riqueza futura de acionistas.

Essa atitude provavelmente implicará numa mudança cultural de como avaliamos esses candidatos a gerentes e líderes, mas vale a pena notar que, em alguns estados, indícios (fracos) de psicopatia já são levados em conta na triagem de posições cruciais à segurança pública, como de policiais, bombeiros e operadores de usinas nucleares. Indivíduos nos mais altos níveis de organizações políticas e corporativas poderosas estão, como os operadores de usinas nucleares, numa posição em que podem causar danos gravíssimos. Quanto maior for a compreensão das bases biológicas de traços de personalidade traiçoeiros, mais estúpido será não usar esses recursos para avaliar os candidatos às posições mais influentes.

Usar a bioprevisão nesse estrato também aplacará inquietações sobre injustiça. Crimes convencionais geralmente são cometidos por pessoas em desvantagem: os sem-teto, os que têm transtorno de aprendizagem e os membros de grupos marginalizados que são maioria na prisão. Incluir rótulos potencialmente estigmatizados de bioprevisão e outras medidas intrusivas irá aumentará ainda mais sua desvantagem.

Mas para a elite privilegiada que disputa cargos de CEO ou presidente? Nem tanto. Inclusive, já que é precisamente a elite que se encontra na melhor posição para tomar essa tecnologia emergente para si, visando uma distopia, é apenas prudente que a primeira cobaia seja ela – e não o assaltante com dificuldade de aprendizagem que vive na rua. Combinado com o fato de que o líder tirano parece ter voltado à moda, um recurso que distingue o líder carismático do psicopata enrustido seria bastante útil no momento.

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Desde maio, os leitores de Época podem acompanhar os estudos e as análises do Future Tense, uma parceria entre a revista Slate, a organização New America e Arizona State University. Trata-se de um esforço para entender como as novas tecnologias mudarão nossas vidas. Em discussão está o poder transformador de longo prazo da robótica, das tecnologias de informação, da biologia sintética e da exploração espacial. A condução ética e democrática do desenvolvimento tecnológico também está entre as preocupações da parceria.

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