BRUMADINHO | 1 ANO DEPOISUMA CIDADE ADOECIDA

 

BRUMADINHO | 1 ANO DEPOISUMA CIDADE ADOECIDA

Tragédia que deixou 270 mortos afeta a saúde e a capacidade da população de seguir em frente

 

Reportagem: Giovana Girardi / Fotos: Tiago Queiroz

24 de janeiro de 2020 | 15h00

Eram 12h28 do dia 25 de janeiro de 2019 quando a barragem B1, da Vale, rompeu em Brumadinho, lançando sobre a própria empresa e comunidades vizinhas um tsunami de 10,5 milhões de metros cúbicos de rejeito de minério de ferro. Um ano depois, a cidade ainda vive o trauma do desastre. Todo mundo conhece alguma das 270 pessoas que morreram e todos foram afetados pela cidade dividida ao meio, pelo som constante dos helicópteros em busca pelas vítimas, pela própria tristeza e de seus conhecidos. Muitos foram embora. Quem ficou sofre com depressão, ansiedade, insônia e já não sente mais um senso de pertencimento por não reconhecer o local. A paisagem mudou, os vizinhos se foram. E ainda há 11 vítimas desaparecidas sob a lama ou que não foram identificadas no IML.


‘É dia 25 todo dia’

A menina Juliana, de 12 anos, desenvolveu pavor de chuva, se assusta quando há muito barulho e vomita compulsivamente se fica nervosa. Letícia, de 7 anos, se tornou uma menina agressiva e fica tensa toda vez que a avó e o pai saem para trabalhar com medo de que eles estejam “indo para a lama”. Rafael, de 12 anos, escreve cartas sobre como está triste, com saudades do tio, e passa por tratamento psiquiátrico e psicológico depois que começou a se mutilar, cortando os próprios braços.

As crianças (os nomes são fictícios) refletem, talvez de modo mais expressivo, um quadro que afeta a população de Brumadinho como um todo. Um ano após o rompimento da barragem de rejeitos de minério da Vale que deixou 272 mortos (considerando dois bebês ainda na barriga das mães), a cidade está adoecida. E mal se reconhece.

“Só de estar aqui a gente já relembra a tragédia. A sede da associação de moradores do Córrego do Feijão foi usada para guardar os corpos até eles serem encaminhados para o IML. O salão comunitário, onde fazíamos eventos e festas da comunidade, passou a ser o PA da Vale – o ponto de atendimento e de doações. A escola foi dormitório dos bombeiros, a igreja evangélica também, a igreja católica foi usada como base de operação, o campo foi usado pelos helicópteros como heliporto onde os sacos com corpos eram depositados, a quadra foi usada como hospital veterinário, tudo isso por mais de três meses. Então, tudo no lugar vai relembrar o dia da tragédia”, comenta Jeferson Custódio Santos Vieira, de 21 anos, presidente da Associação de Moradores do Córrego do Feijão.

O estudante de Direito perdeu na tragédia uma tia e a avó que lhe criou como mãe. Diomar Custódio dos Santos Silva, que tinha 57 anos, era cozinheira da pousada Nova Estância, arrastada pelo tsunami de rejeitos. A tragédia, que também levou uma das filhas de Diomar, Jussara Ferreira dos Passos Silva, de 35 anos, camareira na pousada, matou no mesmo local 17 pessoas. Entre elas, os donos da Nova Estância, Cleosane e Márcio Mascarenhas, o filho deles, o Marcinho, e uma família de cinco pessoas que estava hospedada lá, entre elas uma grávida de cinco meses (leia mais abaixo).

Jeferson conta que no dia a avó saiu de casa um pouco atrasada. “Ela me disse: ‘você arruma a casa para mim, olha os meninos (irmãos dele) e fala com a mãe (bisavó) que eu vou para Brumadinho. Provavelmente eu vou demorar a voltar para casa’. Mal sabia ela que demoraria mais de 14 dias para voltar para casa.”

O letreiro da entrada de Brumadinho virou local de homenagens e protestos; é aqui que familiares de desaparecidos na tragédia se reúnem há um ano

Esse foi o tempo que levou para identificarem o corpo de Diomar, encontrado a cerca de 10 km de distância de onde estava. Assim como ocorreu com as famílias das outras vítimas, houve pouco tempo para despedidas. “A gente não pôde fazer um velório, não pôde respeitar nossas tradições fúnebres”, afirma.

“Minha vó tinha uma roupa escolhida que ela queria usar quando morresse. É uma tradição da minha família. Minha vó tinha essa roupa, minha bisavó tem, minha tataravó tinha, todas as gerações da minha família sempre têm uma roupa com a qual elas querem ser enterradas, e não pudemos vesti-la assim”, lamenta.

A comunidade do Córrego do Feijão foi a mais afetada pela tragédia. Ali viviam ou tinham família 35 vítimas. Era onde ficava a mina e a barragem da Vale que estourou. Foi o ponto onde, logo depois do desastre, se concentraram todos os esforços de busca e atendimento. Mas passado o momento emergencial, as operações se moveram para outros locais da cidade e o bairro está esvaziado.

As pessoas estão entristecidas. Você pode ver que está tudo parado. Antes tinha movimento. Agora não tem gente. Parece que a gente não está vivendo. É aquele negócio, é dia 25 todo dia
Jeferson Custódio Santos Vieira, presidente da Associação de Moradores do Córrego do Feijão
No celular, Jeferson carrega a foto da avó, Diomar, de 57 anos, uma das vítimas do rompimento da barragem

Jeferson calculou que pelo menos 49 famílias foram embora dali para moradias temporárias fornecidas pela Vale, mas mais gente já deixou o lugar. Muitos venderam suas casas, o comércio que existia antes fechou. “São vários os motivos: casas interditadas por danos causados pelo rompimento da barragem, problemas psicológicos, problemas de saúde física, perda de parentes. Aqueles com problemas psicológicos se mudaram para ficar perto do atendimento e fora dessa área, que é uma área de muito estresse”, diz.

Ficar nesse lugar é difícil. O tempo todo tem caminhão passando, tem ônibus, o barulho é intenso o dia todo. Isso deixa a gente muito irritado. Aqui era super tranquilo, até os passarinhos estão diminuindo. A gente vê que até os animais estão sumindo, por conta do estresse a que eles estão expostos, poeira demais, barulho demais
Jeferson Custódio Santos Vieira, presidente da Associação de Moradores do Córrego do Feijão

“Mas nos primeiros meses era pior. Eu não posso ouvir barulho de helicóptero que eu fico estressado. Até falei isso com a minha psicóloga, ela disse que é um estresse pós-traumático. (Se escuto) barulho de helicóptero no lugar em que eu estiver, mesmo se eu estiver em Belo Horizonte, eu já fico meio assim”, conta com o olhar distante, entristecido.

Durante os cinco dias em que estivemos em Brumadinho em meados do mês, vimos esse olhar diversas vezes. O que Jeferson relata é algo que está sendo sentido, em maior ou menor grau, por toda a cidade. Leia também o Diário de Brumadinho, em que trazemos algumas impressões pessoais sobre os dias em que passamos lá.

SAUDADE

Jeferson estava em casa, no Córrego do Feijão, quando rompeu a barragem. Ele correu até o fim da estradinha que corta o bairro, ainda a tempo de ver a lama descendo com velocidade. Ao olhar em direção à pousada Nova Estância, viu as árvores tombando. Sua avó, Diomar, trabalhava lá e foi uma das vítimas.

LEMBRANÇAS

Boa parte das estruturas da comunidade foi usada em suporte às buscas e ao atendimento das vítimas. A área da igreja católica do Córrego do Feijão foi transformada em local de base das operações dos bombeiros. No campo atrás, helicópteros pousavam trazendo corpos embalados em sacos pretos.

ABANDONO

Ao longo do ano, os moradores foram deixando a comunidade. Pelo menos 49 famílias foram para moradias temporárias e o comércio fechou. Nas ruas, não se vê quase ninguém. A exceção são trabalhadores que fazem obras emergenciais de reparação na região. O barulho de caminhões é constante.

ABASTECIMENTO

“A gente não pode beber nem água da torneira que era uma coisa que a gente fazia um ano atrás. Hoje em dia a gente só bebe água mineral”, conta Jeferson. A população da comunidade não confia no abastecimento fornecido após a tragédia e exigiu da Vale água mineral. Cada família recebe dez fardos por semana.


Adoecimento coletivo

Segundo a Secretaria de Saúde de Brumadinho, houve um aumento da procura por atendimento psicológico e psiquiátrico, a ponto de a prefeitura ter de contratar mais desses profissionais. Da equipe de saúde mental que hoje tem 39 profissionais, 24 foram contratados depois da tragédia. De janeiro a novembro do ano passado, o consumo de antidepressivos cresceu 56% e o de ansiolíticos, 79%, em relação ao mesmo período de 2018. As tentativas de suicídio foram de 41 em 2018 para 51 no ano passado. Trata-se de um adoecimento coletivo, um problema de saúde pública.

“As pessoas tiveram seus direitos violados, sua cidadania atacada. É um problema da cidade como um todo. E é importante que as pessoas, para serem tratadas, entendam que elas fazem parte de um todo, que a dor delas não é individual”, explica a psicóloga Mariana Tavares, que participou da elaboração de um relatório técnico sobre os impactos do desastre na saúde mental das populações dos municípios atingidos.

Na sua avaliação, a reparação financeira não vai resolver o problema. “As pessoas querem ouvir um pedido de desculpas da Vale. E querem a garantia de que isso nunca mais vai acontecer”, diz.

A situação atinge todo mundo, de adultos a crianças, como as citadas no início do texto. A menina Juliana, moradora do Córrego do Feijão, perdeu uma tia na tragédia e muitos vizinhos. Sua avó não consegue “sair do dia 25”, como contou sua mãe, e a garota começou a passar mal logo depois da tragédia. Dois dias depois do rompimento da barragem, uma sirene foi acionada de madrugada na região, por ter sido detectado um risco de rompimento de mais uma barragem, a B6, de água. Os moradores, já assustados, tiveram de sair correndo de suas casas para lugares mais altos.

Naquele dia, conta a mãe, ela vomitou sem parar. E o problema voltou a se repetir com frequência. Os pais chegaram a procurar um gastropediatra e fizeram uma endoscopia na garota, mas não encontraram nenhuma explicação física. “É tudo psicológico”, resigna-se a mãe.

Os momentos de chuva são os piores. “Ontem, quando balançava as árvores com aquele vento forte, ela já agarrou em mim em pânico. Não consegue ficar sozinha. Criou um medo absurdo e passa mal até se a gente fala um pouco mais alto com ela. Um dia tomou um pito da professora na escola e vomitou horrores”, contou no dia seguinte a uma chuva particularmente forte na cidade.

O adoecimento mental atinge também as crianças de Brumadinho; no detalhe, os brinquedos simples do menino Rafael, que vem sofrendo as consequências da tragédia

Em outra comunidade, o Tejuco, que absorveu toda a movimentação de tráfego de Brumadinho nos dias seguintes à tragédia – depois que a principal via da cidade, que liga a zona rural à zona urbana, foi destruída pela lama -, vive o garoto Rafael.

Da varanda de casa, ele consegue ver onde ficava a barragem e apontar a direção onde ficava o sítio do tio, vizinho à barragem, que foi totalmente soterrado com a passagem da lama. A família era muito próxima dele. Trabalhando em uma horta atrás da mina da Vale, a mãe de Rafael ouviu o estrondo quando a barragem se rompeu e imediatamente soube que seu primo, criado com ela como um irmão, tinha sido atingido.

A agricultora ainda está profundamente abalada com a perda e depende de comprimidos para dormir e para se manter de pé ao longo do dia. Com o tempo, acompanhando o sofrimento dela, o menino também começou a adoecer e a cortar os braços. Um psiquiatra alertou que ela corria o risco de perder o menino.

Hoje tenho medo de deixá-lo sozinho em casa. Já o encontrei várias vezes sangrando. Um dia, já no final do ano, ele acordou, não quis ir para a escola. Eu insisti para ir, faltava pouco para o ano acabar. Ele pôs uma blusa de manga comprida, mas estava um calorão, eu estranhei, mas ele saiu. Dali um pouco, a diretora me chamou para correr na escola. Cheguei lá e ele estava sangrando
Mãe do garoto Rafael, que vive na comunidade do Tejuco

“Às vezes ele me fala: ‘Tem hora que a vida da gente não tem sentido, né, mãe? A Vale vai matar todo mundo mesmo. O que não morreu na lama, vai morrer todo mundo doente’. Porque aqui todo mundo anda com a cabeça baixa, sabe? Parece que tem um peso nas costas da gente. Queria um dia acordar e ver que foi um pesadelo. A gente vai acordar e vai ficar bem. Mas acorda, abre o olho, e vê a família toda doente”, afirma a mãe.

Da varanda da casa, que fica numa comunidade rural, era possível ver onde ficava a barragem

“Isso aqui parecia uma área de guerra. Os helicópteros saíam e passavam aqui na frente com os corpos pendurados. Era toda hora, um barulho infernal, mais de 50 num dia. Se a gente que é adulto não ficou com cabeça boa, imagina criança?”, questiona a mãe, com o garoto pendurado em seu pescoço.

Rafael é dócil, amoroso, e queria nos acompanhar a reportagem em uma tentativa de chegar até o local onde ficava o sítio do tio, hoje inacessível. Rápido, ele respondia dados sobre mineração na região antes mesmo de a mãe conseguir falar. Para a reportagem, disse que estava bem, mas que sentia muito sono por causa dos remédios.

Além de medicado, ele hoje é acompanhado por uma psicóloga do posto de saúde. Mas no início, quando os problemas começaram a ser identificados, ele era atendido em um grupo com mais cinco crianças. Segundo a mãe, todas com sintomas parecidos.

DESOLAÇÃO

“Tem hora que a vida da gente não tem sentido, né, mãe? A Vale vai matar todo mundo mesmo. O que não morreu na lama, vai morrer todo mundo doente”, disse o menino Rafael a sua mãe, segundo relato dela. Os dois sofrem com a perda de um primo-irmão da mãe e dependem de tratamento psiquiátrico e psicológico.

RUÍNAS

No Parque da Cachoeira, comunidade que teve duas ruas tomadas pelo tsunami de rejeitos, 66 residências foram afetadas e cinco pessoas morreram. O local virou um cemitério de casinhas. Janelas, portas e telhados se foram, a lama ainda se faz presente e plantas começam a crescer entre os escombros.

SEM HORTA, NEM CÓRREGO

Gilberto Soares Lopes olha com tristeza para o local onde antes ele costumava ir com o cunhado Paulo Geovane dos Santos. Então com 42 anos, Santos morava em um sítio ao lado da Vale que foi levado pela lama. “Isso aqui tudo era horta. Pescava muito aqui e também numa lagoa que tinha mais ali para cima.”

PELA JANELA

No Parque da Cachoeira, só sobrou desta casa a parede com o vitrô, emoldurando a “zona quente”. É assim que é chamada a área tomada pela lama e onde ainda são feitas buscas dos bombeiros pelas 11 vítimas que não foram encontradas. Ao fundo é possível observar uma máquina escavando os rejeitos.


Pós-tragédia, boom populacional

No município que tinha, há um ano, cerca de 38 mil habitantes, praticamente todo mundo conhece alguém que morreu na tragédia. Eram pais, mães, filhos, parentes distantes, vizinhos, amigos, colegas de trabalho, de escola, da igreja, da comunidade. Além de levar vidas, a lama destruiu moradias, sítios, córregos, lagoas.

Se por um lado muita gente foi embora, por outro, ocorreu uma migração oposta. A prefeitura estima que ao longo do ano a população cresceu cerca de 15%. Em torno de 5 mil pessoas se mudaram para lá na tentativa de também conseguirem o auxílio emergencial fornecido pela Vale a todos os moradores da cidade ou para trabalhar nos mais diversos tipos de obras emergenciais que a empresa está fazendo para recuperar os estragos.

De acordo com a mineradora, foram mobilizadas 45 empresas, 584 equipamentos e 2,8 mil trabalhadores, entre funcionários diretos e terceirizados. Pelo menos metade são moradores de Brumadinho e região, diz a Vale.

O trânsito se tornou intenso, e, apesar de alguns locais já terem sido liberados, boa parte da área de 32 km de perímetro tomada pela lama continua desfigurada. Uma paisagem marrom desoladora ainda ocupa o que antes era um belo vale. Tudo isso junto gerou um sentimento de que a cidade está irreconhecível.

“Temos muitas crianças fazendo terapia porque elas não estão dando conta de suportar toda essa dor, esse sofrimento. Num primeiro momento, uma psicóloga do posto de saúde estava fazendo atendimento de crianças em grupo justamente porque não estava conseguindo atender tanta gente, e estamos vindo para atender essa demanda”, explica a psicóloga Angela Maria Mendonça, que foi contratada num sistema emergencial no processo de ampliação das equipes de saúde mental.

Christiane Passos é secretária de Desenvolvimento Social de Brumadinho. Ela assumiu o cargo após a morte da amiga e titular da pasta, Sirlei de Brito

Ela atende no Parque da Cachoeira, outra comunidade bastante afetada pelo desastre. Localizado abaixo do complexo da Vale, ao longo do córrego Ferro-Carvão – por onde a onda de rejeitos se espalhou – o bairro teve duas ruas inteiras tomadas pela lama e 66 casas foram atingidas, matando cinco moradores. Hortas e até mesmo uma cachoeira desapareceram ali.

Pelo grau de impacto sofrido pela população, inédito no País, a prefeitura de Brumadinho teve também de buscar novas estruturas para atender as pessoas. Dois meses após o rompimento da barragem, foi criado o Programa de Atendimento Especial em Calamidade (Paec), para oferecer de modo conjunto o atendimento psicossocial, aumentando a oferta de saúde mental que era antes só do SUS.

O Paec foi estabelecido dentro de um acordo de cooperação fechado pela prefeitura com a Vale, que repassou R$ 32 milhões para a ampliação da assistência de saúde e psicossocial no município. Duas unidades foram instaladas no Córrego do Feijão e no Parque da Cachoeira e oferecem atendimento psicológico, de assistência social e técnico-jurídica.

A estrutura não existe no sistema nacional de atendimento a populações em situação de vulnerabilidade social e foi criada do zero.

Brumadinho é uma cidade em constante obra. Na região, o barulho dos helicópteros deu lugar ao vai-e-vem de caminhões
Percebemos que não podíamos aplicar nem o Cras (Centro de Referência da Assistência Social), que traz a atenção básica da assistência, nem o Creas (Centro de Referência Especializado de Assistência Social), que é a atenção especial. Nossa situação estava além disso. A saúde mental das pessoas estava tão comprometida que a gente precisava de mais do que isso
Christiane Passos, secretária de Desenvolvimento Social de Brumadinho

Ela mesma assumiu a pasta na situação mais adversa possível, incumbida de ocupar o cargo que havia sido de uma de suas melhores amigas, morta na tragédia. A advogada Sirlei de Brito morava na Vila Ferteco, ao lado da portaria da Vale. Ela estava de férias e em casa quando a barragem rompeu. Christiane era, então, assessora de comunicação da prefeitura, e assumiu a nova função um tempo depois.

“Até hoje penso em como ela resolveria as situações que estamos vivendo. Ela tinha um amor muito grande por isso aqui. Sempre digo que não estou substituindo-a de forma alguma, porque é muito difícil substituí-la. Peço ajuda dela, sabedoria sempre para que me ajude, porque não tem sido fácil”, afirma Christiane, sem conseguir contar as lágrimas.

A movimentação de caminhões na “zona quente”, área que foi atingida pela lama, é intensa e constante

Ela teme que as pessoas de fora da cidade já não entendam o que eles estão passando. “A gente sente que as pessoas já esqueceram. Moro em Betim e sinto que as pessoas lá não tem noção do que a gente está vivendo, ninguém sabe que desde 25 de janeiro a gente respira essa tristeza, a tragédia 24 horas por dia. É um adoecimento que não tem parâmetro e a gente não sabe onde vai chegar”, diz a secretária.

O secretário de Saúde do município, Junio Araújo Alves, afirma que a procura por atendimento médico em geral cresceu na cidade no ano passado. “As pessoas querem ser abraçadas, acolhidas. É visível que a sensibilidade está aflorada. A sensação de dor e de doença mudou para o morador de Brumadinho. Dores que eram suportáveis hoje não são mais suportadas.”

ANGÚSTIA

“Não aceitamos esse termo ‘desaparecidos’. Elas estavam lá trabalhando, morreram no horário sagrado, do almoço. Elas simplesmente ainda não foram localizadas naquela extensão enorme da lama, mas estão lá”, diz Nathália (à dir.), junto a Josiana. Elas aguardam que suas irmãs, Juliana e Lecilda, sejam achadas.

CONFORTO

A cabo Tailane Aparecida Teixeira participou das buscas pela primeira vez no começo deste mês e se emocionou diante do tamanho da tragédia. “Sempre que eu olho para esse cenário, eu fico imaginando o desespero das famílias ao saber que teriam algum ente aqui e quero levar conforto para elas.”

ESPERA

Dileivande de Assis Alves, do Córrego do Feijão, conta que nem lembrava que tinha uma barragem de rejeitos ali. “Para mim era uma estrada de caminhão. Era sólida por cima.” Ela perdeu a cunhada Angelita no desastre. “Não sei se é porque ela era muito magrinha e fininha que ainda não encontraram ela.”


A angústia da busca e da espera

“Quando o povo de Mariana morreu, nós não demos a devida importância. Nós não gritamos por Mariana. Se a gente tivesse gritado, Brumadinho não teria acontecido. Por isso hoje caminhamos com essa luta, porque para a gente essas pessoas eram muito especiais. A única maneira de honrar a morte delas é que a Vale aprenda, que toda a mineração aprenda, que todo o mundo aprenda, que nenhum dinheiro, nenhum lucro vale a vida. Então a gente grita por Brumadinho, faz o que a gente pode para mudar essa história.”

A declaração é da professora Nathália de Oliveira, membro da Avabrum, associação que foi criada pelos familiares das vítimas e atingidos pelo rompimento da barragem.

Ela é irmã de Lecilda de Oliveira, que era analista de operações da Vale e estava dentro do refeitório quando a barragem rompeu. Lecilda tinha 49 anos, quase 30 de empresa, e faz parte do grupo de 11 vítimas que ainda não foram localizadas ou identificadas no IML.

A longa espera e a ausência de um corpo para enterrar para encerrar um processo transformaram o último ano em uma angústia permanente para essas famílias.

No começo, a gente tinha aquela esperança, porque a cada dia que tinha um velório, uma pessoa identificada, a gente ficava pensando: a que horas o meu telefone vai tocar? E nós estamos nessa angústia até hoje. Tem gente que fala que imagina o que estamos passando, mas não imagina. Porque a vida delas seguiu. Nós estamos presos no dia 25 de janeiro
Nathália de Oliveira, professora e membro da Avabrum

Ela afirma, porém, que não perde a esperança. “O Sol brilha, a gente sabe que os bombeiros estão lá trabalhando e a gente tem aquela esperança de que, se achar um corpo, nós seremos comunicados.”

Desde o início do ano, com as chuvas intensas que atingem a região, o desespero aumentou. Chegou a se cogitar uma redução nas operações de busca. “Isso aí foi a morte para a gente. O seu Geraldo morreu mais um pouquinho nesse dia. Ele ajoelhou no chão, pôs a mão para o céu e comoveu todo mundo numa sala, falando: ‘não pare de procurar a minha Ju’. Foi muito difícil esse momento”, lembra.

Geraldo é pai de Juliana Resende, que era analista administrativa da Vale. Ela, então com 33 anos, e o marido, Dênis da Silva, com 37, morreram na tragédia, deixando dois meninos, gêmeos, de apenas dez meses. Dênis foi achado logo no começo, mas ela, ainda não. Hoje, são Geraldo e Ambrosina, sua mulher, que cuidam dos pequenos.

No centro de operações dos bombeiros, uma bandeira do Brasil que foi resgatada dos escombros é um item que traz motivação aos oficiais

“A angústia da espera chega a ser enlouquecedora. Momentos de choro, tristeza, esse turbilhão de sentimentos, são praticamente assim, diários. Mas a gente tem transformado em luta para não deixar que essas mortes sejam em vão”, afirma Josiana Resende, irmã de Juliana. Ela também trabalhava na Vale, na enfermagem, e se salvou por estar de folga no dia.

Nathália e Josiana, que também faz parte da Avabrum, conversaram conosco em frente ao letreiro de Brumadinho. Elas fizeram questão de marcar a entrevista no local que se tornou ponto de manifestações e protestos. “Sabemos que eles morreram, mas não temos um túmulo para fazer uma homenagem, levar uma flor. Então aqui virou o nosso marco. Acendemos velas, fazemos orações. Soltamos balões e, na maioria das vezes, o vento os leva para a direção do Córrego do Feijão”, explica Nathália.

Na comunidade onde ficava a barragem, a espera é pela localização de Angelita Cristiane Freitas de Assis, que era técnica em enfermagem na Vale. Com 37 anos, ela deixou marido, Evanir Geraldo, e dois filhos adolescentes. Evanir nunca mais voltou ao bairro, onde ainda mora sua mãe, que sofre pela perda da nora e de diversos amigos.

Minha mãe não consegue sair do dia 25 e meu irmão ficou meio atrapalhado das ideias. Ele é pastor, mas se afastou do trabalho. Ele me diz que não consegue pregar a verdade se está destruído por dentro
Dileivande de Assis Alves, cunhada de Angelita

Entre as vítimas não encontradas, a única que não trabalhava na Vale era Maria de Lurdes da Costa Bueno. Quando rompeu a barragem, ela estava na pousada Nova Estância com a família – seu marido, Adriano Ribeiro da Silva; os filhos dele, Luiz e Camila Taliberti; e a mulher de Luiz, Fernanda Damian de Almeida, grávida de cinco meses de Lorenzo. Todos já foram achados, menos Maria de Lurdes.

Sua filha, Patrícia Borelli, de 37 anos, acompanha as buscas com um nível a mais de angústia, à distância, de Nova York, onde mora. “Eu nem sabia que eles estavam lá. Sabia que o Luiz e a Fernanda estavam visitando (eles moravam na Austrália) para comemorar a gravidez, que eles iam viajar juntos, mas não sabia onde nem quando. Minha mãe morava no interior de SP, nem me preocupei”, conta.

Adriano, Luiz e Camila foram encontrados rapidamente, e Patrícia veio ao Brasil com o irmão, na esperança de que logo a mãe também seria achada. Ficaram 20 dias na região, visitaram o local, conversaram com pessoas que tinham visto a família. “Eu conseguia ver a marca onde a onda de lama veio, alta, mais de dez metros. Dava para ver um pedaço de parede da pousada, era isso, mais nada. Aí consegui visualizar a força do que ocorreu e por que encontraram os outros, mas não ela. Achei que estariam todos próximos, mas não tem essa lógica, cada um foi para um lado”, diz.

Patrícia se chocou quando o então presidente da Vale, Fábio Schvartsman, em depoimento na Câmara dos Deputados em fevereiro, disse que a empresa é “uma joia, que não pode ser condenada por acidente que aconteceu em sua barragem, por maior que tenha sido a tragédia”.

De longe, homem observa a tenda montada pelos bombeiros em área de resgate; trabalho da corporação já é o mais longo da história do país

Quando completou um mês da tragédia, ela escreveu um artigo no jornal Folha de S. Paulo dizendo que ele estava errado. “A minha mãe, Malu, é que era uma joia brasileira. Todo mundo que fala dela lembra-se do seu sorriso, da sua bondade. Da sua bravura de leoa quando mexiam com a família dela. A Malu foi levada pela lama tóxica que a Vale derramou lá em Brumadinho. Foram com ela Adriano, Camila, Luiz, Fernanda, Lorenzo: cinco joias, de futuro longo, violentamente interrompido no dia 25 de janeiro. Foram com eles outras 300 ou mais pessoas-joias: pais, filhos, netos, avós, sobrinhos, tios, irmãos.”

Suas críticas repercutiram a ponto de os bombeiros terem passado a usar a expressão para se referir às pessoas que eles ainda buscavam. São joias os 11 que ainda não foram encontrados. Toda vez que chega um grupamento novo para trabalhar, os militares recebem um cartaz com fotos e uma breve descrição dos 11, para eles se relacionarem de algum modo com as vítimas.

Hoje permanecem em campo cerca de 75 bombeiros – no auge das buscas, foram mais de 600. Para continuar os trabalhos nas condições de chuva, duas enormes tendas foram montadas em meio à chamada zona quente, para receber os rejeitos. Lá os bombeiros fazem uma vistoria atrás de segmentos de corpos. Com 150 x 50 metros cada uma, elas ocupam uma área de 15 mil metros quadrados.

“O que queremos é levar conforto à família das joias, das pessoas que ainda não foram encontradas. Sempre que eu olho para esse cenário, eu fico imaginando o desespero das famílias ao saber que teria algum ente aqui”, relatou a cabo Tailane Aparecida Teixeira em sua primeira participação nas buscas. Em meados de janeiro, quando conversou com a reportagem, ela estava lá fazia uma semana, e também não conseguiu esconder a emoção de trabalhar em um local tão triste.

Perdi um filho há nove meses e justo na dobra onde eu estava, à medida que foi avançado o trabalho, encontramos muito material de criança. Brinquedinho, caderno, isso mexeu muito comigo. Muitos pais que aqui faleceram não vão ter a oportunidade de ver os filhos crescerem. Eu tive a oportunidade de sepultar o meu filho, então quero levar isso para a família dos 11 que ainda faltam. Levar esperança. Eu não encontrei, mas eu me doei para que isso acontecesse e é isso que vou fazer até o último minuto em que eu estiver aqui.
Tailane Aparecida Teixeira, cabo do Corpo de Bombeiros

Nathália, Josiana, Patricia e Dileivande agradecem. “Esses 11… as pessoas pensam que é um número pequeno, que tudo bem. Os bombeiros não estão salvando eles, não há mais o que fazer por eles. Os bombeiros estão nos salvando. Nós precisamos fechar esse ciclo, é uma dignidade”, diz Nathália.

VIDA

Há um ano, na área onde o pontilhão foi destruído pela força da onda de lama, os passarinhos chamavam a atenção em meio a um cenário desolador. Hoje, os moradores do Córrego do Feijão acreditam que em quantidade de aves é menor. “Os animais estão sumindo por conta do estresse”, diz Jeferson.

RIO PARAOPEBA

Uma obra de contenção e de tratamento de água foi feita pela Vale no ponto onde o mar de lama, que descia pelo córrego Ferro-Carvão, encontrou com o Rio Paraopeba. Quando chove muito, porém, como tem ocorrido ao longo deste mês, a lama volta a descer para o rio, como a reportagem presenciou.

ONIPRESENTE

memória do desastre é constante para os moradores. A chuva traz o medo de que os rejeitos se espalhem mais, que o rio Paraopeba suba e, ainda contaminado pela lama, inunde a área urbana. Essa parte de Brumadinho não foi afetada fisicamente, mas, emocionalmente, todos os habitantes sentem a tragédia.

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