A mineira que está à frente dos assuntos de discriminação em uma região conturbadas da França

 

A mineira que está à frente dos assuntos de discriminação em uma região conturbadas da França

Eleita pelo Partido Comunista, a mineira Silvia Capanema, 38 anos, está à frente dos assuntos de violência e discriminação em uma das regiões mais conturbadas e pobres da França

ANA CECILIA IMPELLIZIERI MARTINS , DE PARIS
10/06/2018 – 08h00 – Atualizado 10/06/2018 08h00
A mineira Silvia Capanema (Foto: Ana Cecilia Impellizieri Martins)

Na quinta-feira, 19 de abril, a mineira Silvia Capanema se preparava para encontrar seus companheiros do Partido Comunista em mais uma manifestação dos ferroviários franceses em greve. Sairia de Saint-Denis, periferia norte de Paris, onde mora, e iria de metrô até Montparnasse, concentração do protesto. Na última hora, no entanto, foi preciso abandonar o plano. A creche de sua filha caçula também anunciou uma paralisação naquela manhã. Silvia reorganizou o dia e se consolou ao conferir seu calendário de manifestações: dia 1 de maio, grande encontro dos sindicatos nacionais; dia 3, protesto contra reformas Macron; dia 5, manifestação nacional convocada pelo deputado de esquerda François Ruffin; dia 23, reinvindicações do funcionalismo público. A agenda agitada não é apenas sinal da assimilação de um hábito tipicamente francês. Silvia segue o que chama política de campo, estilo com o qual exerce seu mandato de vereadora do departamento de Seine-Saint-Denis (região que reúne 24 cidades, com 1,6 milhão de habitantes), de vice-presidente do Conselho Departamental, e ainda o cargo executivo de Secretária da Juventude. Aos 38 anos, a brasileira está à frente de temas espinhosos como delinquência juvenil, combate à discriminação e violência contra as mulheres, em uma das regiões mais pobres da França.

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“Acredito numa política participativa. E eu venho exatamente da militância francesa de esquerda, que tem forte atuação nas ruas. E hoje, como representante dos eleitores, preciso lutar pelos seus direitos”, diz Silvia, eleita vereadora em 2014 e, em nova eleição em 2015, vice-presidente do Conselho Departamental – na França não é proibido o acúmulo de funções legislativas. Parece natural que em uma região onde se contabiliza a presença de mais de 140 nacionalidades, uma brasileira (hoje também de nacionalidade francesa) assuma cargos políticos. “Os temas defendidos por Silvia, como a defesa dos direitos da mulher, os programas de inserção de jovens e políticas anti-discriminatórias têm muito apelo em Saint-Denis”, avalia Julian Attal, assessor direto da brasileira.

O engajamento social de madame Capanêmá, como é chamada, a transformou em uma figura popular na sede do governo de Saint-Denis, em Bobigny, onde fica seu gabinete. Extrovertida e sorridente, características mais raras onde circula, é parada nos corredores por colegas, recebe convites para almoços, combina visitas a projetos e associações. A sua eleição, no entanto, não chegou a ser uma unanimidade. Logo após o anúncio dos resultados, o mais importante jornal local publicou a carta de um leitor: “Com Silvia Capanema, Saint-Denis finalmente entra para o terceiro mundo.” Em outra ocasião, foi interrompida em um debate por um opositor que, fazendo alusão à sua origem, dizia que ela entendia apenas de favelas.

Silvia entende de favelas, inclusive daquelas presentes em Saint-Denis nos anos 1960 e 1970, mas não apenas. Formada em Comunicação pela UFMG, embarcou para Paris em 2001 para cursos de pós-graduação. Na prestigiada École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS) fez mestrado sobre a Revolta da Chibata, de 1910, e emendou um doutorado sobre o mesmo tema. Hoje é professora de história e cultura brasileira na Universidade Paris 13, escreve artigos, organiza livros na França e no Brasil. “Não me imagino deixando o trabalho como professora. Essa é a maneira em que fico perto do Brasil”, diz.

Mas há outras formas ainda. Casada desde 2003 com o urbanista franco-brasileiro René Schmidt, Silvia não abre mão de pão de queijo e de assistir aos jogos do Atlético Mineiro, o amado Galo. Devota de São Francisco e Sant’Anna, diz que é possível conciliar catolicismo e comunismo. “As ideias políticas precisam sair dessa rigidez e entrar na vida real”, diz Silvia, que por vida real entende não apenas acumular as funções políticas e de professora, mais ainda cuidar de duas filhas, Hannah, 4 anos, e Rosa, 1 ano e meio, batizadas com nome de mulheres que admira: Hannah Arendt e Rosa Luxemburgo. “Meu marido é quem cozinha em casa e ajuda muito. Mas tem horas que é comigo e as meninas estão muito acostumadas a irem aos eventos políticos à noite e finais de semana”, conta Silvia, grávida de cinco meses de Clara, nome escolhido em homenagem à marxista e feminista alemã Clara Zetkin.

A entrada na política não deixa de ter a ver com as filhas. Em 2010, Silvia – cuja avô materna era prima de Gustavo Capanema, o bem relacionado ministro do Estado Novo de Getúlio Vargas – estava em busca de um apartamento para a família. O orçamento limitado foi a razão pela qual trocou a vida parisiense em Nation, onde morava, por Saint-Denis. A maior parte da região – conhecida pela grande concentração de imigrantes, também pelo estádio de futebol Stade de France, construído para a Copa de 1998, e pela basílica onde jazem reis e rainhas franceses –, pouco lembra o charme da capital do país. “Eu levei um choque. Era uma realidade totalmente diferente. Espaços públicos degradados, muitos ambulantes nas ruas e pobreza. Um outro mundo a menos de meia hora de metrô.”, conta ela.

Se por um lado Saint-Denis apresentou para Silvia, filha de uma família de classe média de Belo Horizonte, a precariedade, também revelou um positivo histórico de políticas públicas de esquerda e uma forte herança comunista. Em Saint-Denis você pode caminhar pela avenida Lênin, passar pelo bairro Karl Marx, deixar seus filhos na creche Yuri Gagarin e voltar para casa no conjunto habitacional Allende. Outro comunista clássico, Oscar Niemeyer, não deu nome a nenhum empreendimento local, mas deixou ali sua marca: o edifício do jornal L’Humanité, hoje abandonado. “Esse legado comunista garantiu a Saint-Denis muitos serviços públicos e a dignidade para os mais pobres“, explica Silvia, que reconhece que a região enfrenta o agravamento de problemas como o tráfico de drogas, a delinquência juvenil e um alto índice de desemprego, que chega a 20%, quase o dobro da média nacional, de cerca de 11%. O de violência também supera largamente os níveis nacionais e envolvem, sobretudo, os jovens.

“Hoje o esquema do tráfico em Saint-Denis é bem parecido com o Brasil. Ele conta com muitos jovens em funções como avião, aquele que faz a droga circular, os que tomam conta da boca e até as senhoras que escondem o dinheiro, as nourrices [tias, no Brasil]. Além do vício, essa situação gera perturbação, agressões e formação de gangues violentas que comumente acertam contas”, diz. Um cenário preocupante, com falta de perspectiva para os jovens, sobretudo os negros, originários das ex-colônias francesas. Ainda assim, o contexto está bem distante da realidade brasileira, onde cerca de 59 jovens negros são assassinados por dia, segundo o último Mapa da Violência.

Em Saint-Denis, mais que as execuções, são as brigas de gangue, agressões, roubos e também as ameaças de extradição os problemas mais recorrentes. Muitos imigrantes, atraídos pelos serviços essenciais ou buscando reencontrar familiares, chegam clandestinamente na região. Recentemente, Silvia participou de uma ação para regularizar a situação de 150 refugiados. “Muitas vezes minha atuação é pontual. Mês passado precisei ajudar uma mulher estrangeira em situação ilegal, abandonada pelo marido, a conseguir uma casa para ela e os três filhos e evitar sua extradição,” conta.

Fraternidade Vermelha (Foto: Ana Cecilia Impellizieri Martins)

Mas se os problemas não são iguais, as benesses da função pública também não o são. Apesar de ter um confortável gabinete, Silvia, cujo mandato vai até 2021, conta apenas com um assessor e uma secretária, além de um salário mensal de EU$ 3000, pelo Conselho Departamental (o que estaria mais próximo da função, no Brasil, de um deputado estadual) e EU $240,00 como vereadora (valor menor devido ao acúmulo dos cargos). Motorista somente com planejamento, já que se trata de um serviço coletivo. Nada parecido com as verbas mensais de gabinete de um vereador das principais capitais brasileiras que passa dos R$ 100.000,00.

No Brasil, Silvia diz não ter partido político, mas procura acompanhar os acontecimentos e se posicionar. Em fevereiro de 2017, esteve com Dilma quando a ex-presidente foi recebida no Senado francês. No dia 16 de abril desse ano, marcou presença na sede do Partido Comunista em Paris em um grande encontro que reuniu o Embaixador da Venezuela em um misto de debate e protesto contra a prisão de Lula. Na mesma noite, postou uma série de fotos do evento no facebook e marcou: #lulalivre. “Lula é a grande figura política do Brasil hoje”, diz a brasileira, fã de Jean-Luc Mélenchon, líder de esquerda e fundador do movimento La France insoumise (A França insubmissa). “Mélanchon entende que a nova política precisa ir além das doutrinas e dos partidos”, resume. Publicamente, se posiciona contra o governo Temer e suas medidas recentes, como a intervenção federal no Rio de Janeiro. “Michel Temer quis  fazer uma manobra política enviando militares para as favelas. As prisões da população negra aumentaram, sem que a criminalidade tenha diminuído”, escreveu no twitter da rádio France Culture, em uma emissão feita após o assassinato de Marielle Franco.

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A morte da vereadora repercutiu diretamente da vida de Silvia, que passou a ser convidada, como política e professora, para entrevistas e debates. “Fiquei bastante abalada. Claro que me identifiquei com ela, como brasileira, mulher, praticamente da mesma idade, que faz através da política uma luta pelos direitos humanos. Mas não sei se teria a coragem que ela teve, de lutar por esses direitos no Brasil. Aqui enfrentamos problemas, mas não pagamos com a vida”, diz Silvia. “Silvia Capanema é uma mulher engajada, uma camarada, que conhece muito bem os bairros populares e luta para mudar concretamente a vida das pessoas. É uma importante porta-voz das populações diversas que habitam este que é o departamento mais pobre da França”, declara Hélène Bidard, adjunta de Anne Hidalgo, prefeita de Paris, e responsável pelos temas da igualdade de gêneros, combate à discriminação e direitos humanos.

Foi Hélène, aliás, uma das responsáveis pela iniciativa de colocar o retrato de Marielle Franco na  fachada do Hôtel de Ville, sede da prefeitura parisiense, com os dizeres: “Paris não se esquecerá”. “O assassinato de Marielle Franco não pode ficar impune pois trata-se de um ato não somente contra as mulheres, mas contra o direito das mulheres estarem na política, viverem sua sexualidade com quiserem e se expressarem para mudar a vida do povo do país onde vivem”, diz Hélène. Silvia concorda. “Estamos ainda buscando nosso espaço. Marielle era, de fato, uma grande liderança, acima de tudo, uma liderança  feminina, o que ainda falta no Brasil e no mundo. Pessoas como ela podem mudar a sociedade. Eu apenas faço o que posso por um mundo um pouco mais justo.”

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