A nova ordem mundial de Trump

O comportamento irracional do presidente americano na cúpula do G7 contrasta com a postura amistosa adotada em seu encontro histórico com o ditador norte-coreano Kim Jong-un. Se de um lado ele pode desintegrar o equilíbrio global em vigor desde o fim da Segunda Guerra, por outro avança na pacificação global de forma inédita. O que isso significa para o mundo?

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Celso Masson e Luisa Purchio

Em menos de 48 horas, o presidente americano Donald Trump protagonizou duas cenas inéditas na história dos chefes de Estado que já ocuparam a Casa Branca. A primeira foi registrada no domingo 10, durante a reunião do G7, grupo que reúne EUA, Alemanha, Japão, Canadá, Itália, França e Reino Unido — as maiores economias do mundo, com exceção da China e da Rússia. O encontro em Quebec, no Canadá, cujo objetivo era tratar do comércio internacional, foi marcado pela tensão. Em uma fotografia emblemática, divulgada pela assessoria da chanceler alemã Angela Merkel, Trump aparece sentado de braços cruzados, enquanto os representantes das outras nações do G7, todos em pé, parecem pressioná-lo para que recue da decisão de sobretaxar os produtos que os EUA importam do grupo. O que se vê ali é um presidente isolado por teimar em uma posição protecionista pautada exclusivamente pelos próprios interesses, ignorando o que o resto do mundo pensa. A outra imagem foi feita em Cingapura, a cidade-Estado asiática escolhida para o sediar o encontro entre Trump e o ditador norte-coreano Kim Jong-un, na manhã da terça-feira 12. Ela retrata um histórico aperto de mão entre os líderes que até pouquíssimo tempo compartilhavam apenas hostilidades recíprocas que colocaram o mundo em alerta de ataques nucleares. O gesto de paz e o acordo que permite a desnuclearização da península coreana contam com o apoio de 51% dos norte-americanos, segundo pesquisa das agências Reuters e Ipsos. Ter a aprovação de mais da metade de seus cidadãos em uma das mais delicadas questões geopolíticas da atualidade é um trunfo e tanto para um presidente que tem enfrentado rejeição dentro e fora do país que governa – em grande parte por agir seguindo unicamente seu instinto. Apesar dos aplausos, persistem as dúvidas sobre quais as garantias de que o acordo seja cumprido. Mais importante: qual o mundo que emerge das controvertidas decisões de Trump.

ISOLADO Angela Merkel encara Trump durante reunião do G7, no Canadá: presidente dos EUA recua de acordo com parceiros e ameaça equilíbrio comercial (Crédito:Jesco Denzel)

Entender a aproximação com a Coreia do Norte, ao mesmo tempo em que o presidente dos EUA se afasta do G7, exige imergir na imprevisível “Trumplândia”, onde as regras antes vigentes não se aplicam. Trump deixou a reunião do G7 antecipadamente e sem cumprir a decisão que havia tomado na véspera, de assinar uma declaração conjunta com os outros países membros. A recusa de formar um pacto de comércio internacional pode levar a uma séria crise e aprofundar o isolamento dos EUA. “Os mecanismos criados após a Segunda Guerra abriram o caminho para relações comerciais pacíficas entre nações que são muitas vezes diversas e que historicamente não se davam bem”, afirmou à ISTOÉ o professor de economia Lee Coppock, diretor de graduação do Departamento de Economia da Universidade de Virginia (EUA). “A globalização tem sido muito útil para a economia dos EUA. Se as tarifas e o isolamento persistirem, isso prejudicará os consumidores e a maioria das empresas dos EUA”, diz o especialista, para quem as decisões de Trump “representam um retrocesso”.

HISTÓRICO Ao apertar a mão do ditador Kim Jong-un, em Cingapura, Trump obtém promessa de desnuclerização das Coreias: intuição diplomática (Crédito:Anthony Wallace)

Resultados

Apesar do impacto internacional negativo, as medidas de Trump para incentivar o crescimento americano estão dando certo no âmbito doméstico. Prova disso é o crescimento contínuo do PIB e a elevação da taxa de juros básica da economia, que havia sido zerada desde o início da crise de 2008 para incentivar investimentos. “Do ponto de vista americano, a política de Trump é interessante, porque os EUA se inserem em mercados novos, diminuem os custos com outras economias e favorecem seu crescimento”, diz Juliana Inhasz, professora de economia do Insper, em São Paulo. “Em uma perspectiva mundial, no entanto, algumas relações comerciais estão sendo sobretaxadas, deixaram de existir ou diminuíram de uma forma muito grande, o que economicamente não é o ideal”. Um exemplo da insegurança que o protecionismo de Trump pode provocar em escala global e que muitas vezes prejudicam até os interesses americanos ficou claro na queda de braço travada com o governo chinês após o anúncio de uma nova tarifa sobre a importação de aço, em abril (leia no quadro em destaque). Para o Brasil, a política de Trump tem um lado bom e outro ruim. Sendo parceiros comerciais dos EUA, nós vendemos commodities para lá. Portanto, o avanço da economia dos EUA impulsiona uma parte da nossa. Por outro lado, isso impõe uma barreira para o Brasil. “O crescimento americano virá com pressão inflacionária e pedirá taxas de juros cada vez mais altas”, afirma a professora do Insper. Com isso, o capital sente-se confortável para migrar em direção à economia americana, onde os retornos são um pouco maiores. Isso desfavorece os investimentos estrangeiros no Brasil e a cotacão do dólar fica ainda mais elevada.
“Ainda é cedo para tirarmos conclusões sobre as políticas de Trump. Tudo depende do resultado das posições que ele está tomando, certamente não convencionais”, diz Samuel Feldberg, professor de relações internacionais da Universidade de São Paulo e atualmente pesquisador convidado da universidade de Tel Aviv, em Israel. “Pode ser uma catástrofe como estão descrevendo, mas Trump tem chance de acertar em algumas medidas”, afirma. Isso se a economia continuar crescendo, a Europa não entrar em crise e o preço do petróleo ficar estável. “Se houver crise econômica em qualquer um dos atores de importância internacional, vai haver uma total desestruturação”, diz Feldberg.

Em paz com Kim

Acertadas ou não, as escolhas de Trump no campo das relações comerciais com o resto do mundo seguem uma coerência estabelecida desde a campanha presidencial, que teve como mote “América primeiro” – uma promessa de revalorizar o protagonismo da maior economia mundial e que foi bem recebida por parte do eleitorado republicano. Bem ou mal, ele está fazendo o que era esperado para que os EUA possam alçar voo. Por ter uma posição privilegiada, o país pode dar as cartas desse jogo. Porém, a mesma coerência não pode ser notada na relação de Trump com o ditador norte-coreano Kim Jong-un. Basta lembrar da frase postada no Twitter em janeiro, em resposta a uma ameaça do então rival asiático: “O líder da Coreia do Norte disse que ‘o botão nuclear está na sua mesa a qualquer momento’. Será que alguém deste regime empobrecido e faminto pode por favor informar a ele que eu também tenho um botão nuclear, muito maior e mais poderoso que o dele, e o meu botão funciona!”. A hostilidade que parecia irreversível saiu de cena na manhã da terça-feira 12, quando ambos apertaram as mãos diante das bandeiras dos dois países em Cingapura. Em tentativas de acordos anteriores, os norte-coreanos se comprometeram a abandonar o programa nuclear, mas não apenas o retomaram, como avançaram. Para Samuel Feldberg, o acordo foi bom para a imagem de Trump, especialmente junto ao seu eleitorado, mas é preciso resultado. “Não temos nada consistente, só uma declaração de intenções — e o caminho do inferno está pavimentado de boas intenções”.

Três escolhas de TRUMP

Para os críticos do presidente americano, ele foi precipitado ao ignorar um aconselhamento especializado — o que o próprio Trump confirmou ao declarar valer-se de sua “intuição”. Quando se trata de diplomacia, esse é um talento questionável. No caso de armas que afetam o mundo todo, é perigoso. Tanto assim que o próprio Pentágono, órgão responsável pela defesa dos EUA, foi pego de surpresa quando o presidente anunciou o fim das manobras militares atualmente realizadas em conjunto com a Coreia do Sul, que ele considera “provocativas e caras”. A presença dos EUA tem sido uma garantia para a segurança da Coreia do Sul e do Japão, principalmente depois de Kim ter lançado, em 2017, mísseis balísticos que cruzaram o espaço aéreo japonês. O fim das manobras não faz parte do acordo assinado em Cingapura, que prevê a completa desnuclearização da Península Coreana. Seguindo sua intuição, Trump diz acreditar que Kim cumprirá o acordo. “Posso estar errado e, daqui a seis meses, vir aqui dizer que errei. Se bem que eu não sei se admitiria isso”, declarou. O diálogo é um avanço inquestionável. Um erro de avaliação de Trump nesse caso, porém, pode ser ainda mais catastrófico que tudo o que ele já fez de forma impensada no afã de criar sua nova ordem mundial.