Anti-government protesters, one carrying a homemade mortar, take cover as security forces fire tear gas to disperse demonstrators in Caracas, Venezuela, Wednesday, May 1, 2019. Opposition leader Juan Guaidó called for Venezuelans to fill streets around the country Wednesday to demand President Nicolás Maduro's ouster. Maduro is also calling for his supporters to rally.  (AP Photo/Fernando Llano)

ASSOCIATED PRESS
 02/05/2019 08:00 -03

O nascimento da crise

Acirramento de conflito impulsiona êxodo de venezuelanos.

Dono de uma lanchonete no terminal rodoviário de Pacaraima (RR), cidade brasileira mais próxima à Venezuela, Manoel Soares conta que foi há 3 anos e 9 meses que o primeiro venezuelano deixou o país para reconstruir a vida do outro lado da fronteira.

De lá para cá a quantidade de migrantes tem aumentado significativamente e registra um boom sempre que há acirramento da crise política e econômica no país vizinho.

Na terça-feira (30), dia em que o presidente autodeclarado Juan Guaidó convocou os militares para derrubar o ditador Nicolás Maduro, a Casa Civil da Presidência da República informou que entraram no Brasil 848 venezuelanos. Esse número é quase 3 vezes maior que a média diária depois que a fronteira foi fechada em 22 de fevereiro. Desde então, os imigrantes deixam seu país de forma ilegal por rotas clandestinas.

Esse êxodo é resultado de uma combinação de crise econômica e política, agravada no início deste ano com a autodeclaração de Guaidó, presidente da Assembleia Nacional, como presidente do país pouco mais de 10 dias após a posse do segundo mandato de Maduro.

Impacto político

Até então, Guaidó era pouco conhecido e não havia uma força obstinada a retirar o líder chavista do comando do país. O líder oposicionista logo teve sua legitimidade reconhecida por mais de 50 países, incluindo Brasil e Estados Unidos.

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Crise na Venezuela se agravou após o presidente da Assembleia Nacional, Juan Guaidó, se autodeclarar presidente do país. 

Na esteira da autodeclaração de Guaidó, os EUA apertaram o cerco a Maduro pela economia. O país anunciou sanções contra a principal estatal venezuelana, a PDVSA. Responsável pela gestão do petróleo, principal ativo da economia do país, gerando 96% da receita, a PDVESA está com sua capacidade de comercialização limitada.

Professor do Instituto de Relações Internacionais da USP (Universidade de São Paulo), Pedro Feliú ressalta, entretanto, que a PDVESA já vinha com problemas gerados por falta de investimento da infraestrutura e “inchaço” na empresa, que passou a ser usada também para controle político. Isso resultou em perda de competitividade.

Feliú destaca que na transição do governo de Hugo Chávez para o de Nicolás Maduro, em 2012, o “coração da economia venezuelana” já começava a sofrer com a queda no preço do barril.

“O barril chegou a picos de US$ 135 e hoje é negociado a US$ 71. Para uma economia que tem mais de 90% da produção atrelada ao petróleo, essa queda já significava perda de receita.”

Feliú acrescenta que as dificuldades advindas da comercialização do petróleo atingiram em cheio as importações. “É um país que importa muito alimento, portanto, quando para de receber dólares do petróleo, a moeda começa a desvalorizar.”

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Apesar de pressão, Maduro resiste e diz ter lealdade dos militares para continuar no poder.

Nesse contexto, o governo Maduro adotou controle cambial e impressão da moeda para manter os gastos do governo. A moeda passou a perder valor frente ao dólar, e o país não conseguiu mais importar. A medida explica a inflação de 2.500.000% entre fevereiro deste ano e fevereiro do ano passado, segundo cálculos da Assembleia Nacional.

“É um país completamente dependente. Quando a Venezuela ingressou no Mercosul [em 2006] o principal argumento favorável era de que a Venezuela era um grande importador. Portanto, essa aproximação com o Brasil traria um mercado que não é pequeno”, analisa Feliú.

Impacto social

Tais medidas geraram hiperinflação e desabastecimento no país, afetando toda a sociedade, especialmente os mais pobres. Estimativa da Acnur (agência da ONU para refugiados) indica que mais de 3 milhões de pessoas já deixaram o país. Além do Brasil, os principais destinos são Colômbia e Peru.

De acordo com a edição mais recente do estudo ‘Condições de Vida’, conduzido por 3 universidades renomadas da Venezuela e publicado em julho do ano passado, 87% dos venezuelanos vivem em situação de pobreza e 64% da população perderam em média 11 quilos em 2017.

Do total de entrevistados, 60% disseram que tinham acordado com fome nos 3 meses anteriores e que não tinham dinheiro para comprar comida.

Cerca de 20% dos venezuelanos não tomam café da manhã, e os lanches são praticamente inexistentes.

70% da população diz não ter dinheiro suficiente para comprar alimentos saudáveis e balanceados.

Além disso, 80% dos domicílios enfrentam algum grau de insegurança alimentar e com dieta anêmica.

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Hospital na fronteira com a Colômbia é ocupado por pessoas em más condições de saúde que migram da Venezuela.

A pobreza foi aumentando progressivamente. Em 2015, atingia 49.9% da população. O índice foi para 51,5% em 2016 e chegou a 61,2%, em 2017.

Conflitos

A vulnerabilidade da população foi se moldando enquanto a economia do país ainda crescia. Nos 14 anos de governo de Hugo Chávez, foram implementadas mudanças estruturais que amarraram a democracia no país.

Feliú acrescenta que no período sob Chávez foram tomadas medidas que aumentaram o poder do presidente, houve aparelhamento do Judiciário e a oposição foi sufocada. O ponto central para a manutenção do chavismo são as Forças Armadas.

A tensão política atingiu um novo ápice em dezembro de 2017, quando Maduro proibiu a participação dos principais partidos de oposição das eleições presidenciais de 2018. Assim, ficaram de fora da corrida eleitoral as legendas mais competitivas, dos oposicionistas Henrique Capriles e Leopoldo López.

Em março do ano passado, a ONU decidiu não enviar observadores para a eleição da Venezuela. O pleito tampouco seria reconhecido pelos Estados Unidos, União Europeia e países latino-americanos como o Brasil.

“Estou profundamente preocupado porque não são cumpridas de forma alguma as condições mínimas para eleições livres e de credibilidade”, destacou à época Zeid Ra’ad al-Hussein, alto comissário das Nações Unidas para direitos humanos. “As liberdades de expressão, opinião, associação e reunião pacífica estão sendo reprimidas.”

Em 20 de maio, Maduro foi reeleito para mais um mandato em uma eleição cuja legitimidade foi questionada interna e externamente. O processo eleitoral foi marcado por denúncias de fraude, boicote da oposição e elevada abstenção.

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Tentativa de Guaidó de dar fim ao regime Maduro tem promessa de conflitos diários. Especialista vê possibilidade de guerra civil.

Neste momento, os militares ainda dão sustentação ao regime de Maduro. Professora de Relações Internacionais da ESPM, Denilde Holzhacke destaca que a principal incerteza é sobre a adesão das Forças Armadas a Guaidó para desembarcar do regime de Maduro.

“As forças mais de elite ainda apoiam Maduro, o que pode levar a um acirramento e gerar conflitos cada vez maiores. Há um ponto de inflexão: de um lado a possibilidade de a oposição não conseguir fazer a transição ou o governo Maduro dobrar sua aposta e continuar no poder.”

Neste contexto, Maduro resiste e Guaidó promete protestos diários. Na avaliação da especialista, com conflitos diários, há possibilidade de uma guerra civil até a destituição do governo.

A expectativa dela, entretanto, é de que o fim do embate ainda está distante. “Ainda vão ter muitos distúrbios no país. Não dá para esperar que seja uma transição de curto prazo; é possível que a gente tenha alguns meses até pacificação de fato.”

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