IMVASÃO DE COMPETÊNCIA Ministério Público pode acionar a Justiça se houver recusa em vacinar crianças no Tocantins

Ministério Público pode acionar a Justiça se houver recusa em vacinar crianças no Tocantins

Orientação foi encaminhada a todos os promotores de Justiça do Tocantins.


01/02/2022 09h39 –
A vacina pediátrica da Pfizer foi aprovada pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa)

O Ministério Público do Tocantins (MPTO) poderá adotar as medidas necessárias para garantir a vacinação de crianças e adolescentes, inclusive acionar a Justiça, se for o caso.

A orientação foi encaminhada Procuradoria-Geral de Justiça, nesta segunda-feira (31), a todos os promotores de Justiça do Estado. O comunicado esclarece sobre o teor da nota técnica aprovada pelo Conselho Nacional de Procuradores-Gerais do Ministério Público dos Estados e da União (CNPG), que trata da vacinação infantil contra a Covid-19.

O documento enviado ao promotores de Justiça cita ainda um despacho do ministro Ricardo Lewandowski, do Supremo Tribunal Federal (STF), atribuindo ao Ministério Público a missão de adotar as medidas para garantir a vacinação infantil.

A Nota Técnica Conjunta nº 01/2022, aprovada na última quarta-feira (26), e se baseia em dispositivos da Constituição Federal e do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).

De acordo com o ECA, pais e responsáveis precisam assegurar a imunização de menores de 18 anos para combater doenças quando há recomendação das autoridades sanitárias. A vacina pediátrica da Pfizer foi aprovada pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) em dezembro, para uso em crianças de 5 a 11 anos.

A nota reforça a posição institucional do Ministério Público em favor das vacinas e, respeitada a independência funcional, apresenta argumentos para a atuação do MP na imunização desse público.

No dia 19 deste mês, o ministro Lewandowski reforçou que cabe aos Ministérios Públicos dos estados e do Distrito Federal tomar providências para assegurar a vacinação de crianças de 5 a 11 anos.

O comunicado é assinado pelo procurador-geral de Justiça, Luciano Casaroti, pela promotora de Justiça Araína Cesárea, coordenadora do Centro de Apoio Operacional da Saúde (CaoSaúde) – órgão auxiliar do MPTO, e pelo promotor de Justiça, Sidney Fiori Júnior, coordenador do Centro de Apoio Operacional às Promotorias da Infância, Juventude e Educação (Caopije).

A teoria da separação dos poderes e a invasão de competência do judiciário nos processos legislativos

Limitações constitucionais e a legitimidade do ativismo judicial

Diego Spínola, Advogado
Publicado por Diego Spínola

há 4 anos

3.121 visualizações
RESUMOO presente artigo tem por objetivo analisar a teoria constitucional da separação entre os poderes, tratando dos aspectos históricos e sua evolução, a forma como foi introduzido tal pensamento no ordenamento jurídico brasileiro, o conceito de poder e política, a maneira coo o assunto é abordado pela doutrina, como a jurisprudência tem tratado os casos concretos, as normas derivadas e sua aplicabilidade prática, em especial, da maneira como essas normas influenciam nas relações institucionais entre os entes públicos e, no que tange a invasão de competência exercida pelo judiciário aos processos originários de prerrogativa constitucional do Poder Executivo e Legislativo. Apresentar crítica ao atual modelo de ativismo judicial, falando sobre os fatores positivos e, sobretudo, ressaltando os negativos e seus reflexos na sociedade contemporânea.

Palavras-chave: Separação dos Poderes, Controle de constitucionalidade, freios e contrapesos, ativismo judicial, autocontenção.

Abstract

The present work aims to analyze the constitutional theory of the separation of powers, dealing with historical aspects and their evolution, the way in which such thinking was introduced in the Brazilian legal system, the concept of power and politics, the way the subject is approached the jurisprudence has dealt with the concrete cases, the derived norms and their practical applicability, in particular of the way in which these norms influence institutional relations between the public entities and, as regards the invasion of competence exercised by the judiciary to the originating processes constitutional prerogative of the Executive and Legislative Branch. Present criticism of the current model of judicial activism, talking about positive factors and, above all, highlighting negatives and their reflexes in contemporary society.

Keywords: Separation of Powers, Constitutionality Control, Brakes and

SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO

2. O ESTADO DEMOCRÁTICO

2.1 CONCEPÇÃO DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO.

2.2 DESENVOLVIMENTO HISTÓRICO DA TEORIA DA SEPARAÇÃO DE PODERES

3. DIVISÃO ESPACIAL DO PODER – ORGANIZAÇÃO E FUNCIONAMENTO DO ESTADO CONTEMPORÂNEO.

3.1 OS TRÊS PODERES.

3.2 FUNÇÕES TÍPICAS E ATÍPICAS.

3.3 CRÍTICAS AO SISTEMA DE SEPARAÇÃO DOS PODERES.

4. A JUDICIALIZAÇÃO NA SOCIEDADE MODERNA E SUAS RELAÇÕES POLITICO-SOCIAIS

4.1 O FENÔMENO DO ATIVISMO JUDICIAL.

4.2 DO ATIVISMO JUDICIAL E A AUTOCONTENÇÃO.

5CONSIDERAÇÕES FINAIS.

6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.

1. INTRODUÇÃO

Democracia é o governo do povo, pelo povo e para o povo. Sempre é remetida a ideia de poder nas mãos do povo, tratando-se de um regime político pelo qual se garante a todos o poder de participar das decisões políticas de um Estado.

Quando se fala em democracia, remete-se ao pensamento na perspectiva de governantes eleitos, de casa legislativas compostas por parlamentares democraticamente escolhidos, sendo esses responsáveis por atender as principais demandas da sociedade e tomar as decisões políticas inerentes ao bom funcionamento estatal. Seriam estes governantes e legisladores os agentes responsáveis pela concretização dos valores e princípios de uma sociedade, a árdua tarefa de converter “a voz do povo” em normas e políticas públicas em fidelidade aos clamores e vontades de um povo.

Contudo, a verdade é que pensar de modo tão simplista, beira a ignorância. A concretização do ideário democrático é complexa e complicada, não sendo na maioria das vezes efetivada.

Democracia pressupõem sociedade ativa, cidadão cientes de seu papel e, a consciência de que o poder decisório está no executivo, no legislativo e também no judiciário. Interpretar e concretizar a constituição é tarefa dos três poderes, pois construção democrática vai desde o voto do deputado federal em processo de proposta legislativa até a edição de sentenças por um juiz.

Seria possível então separar funções, distinguir em atividades típica e atípica de cada poder, e identificar com precisão a invasão de competências, ou quando essa invasão se faz realmente necessária dado as omissões de um dos poderes? A “voz do povo” está realmente sendo ouvida e aplicada dentro de um poder não formado por representantes eleitos, como é a situação do judiciário?

É em meio a essas dúvidas e, tendo em vista o crescente envolvimento da população nas decisões tomadas pela principal casa do poder judiciário no país, o Supremo Tribunal Federal, que cabe aqui discutir e compreender melhor o princípio da separação dos poderes, a legitimidade para tomada de decisões e, se num Estado Democrático de Direito é aplicável o ativismo judicial sem que haja prejuízos ao sistema de separação de poderes.

1. O ESTADO DEMOCRÁTICO

O Estado democrático é uma situação jurídica, ou um sistema institucional, no qual se designa um Estado que busca garantir o respeito das liberdades civis, pelas garantias fundamentais, através do estabelecimento de um conjunto normativo gerando uma proteção jurídica. Em um estado de direito, as próprias autoridades políticas estão sujeitas ao respeito das regras de direito.

O Estado de Direito se opõe assim ao estado baseado no uso arbitrário do poder, na figura das monarquias absolutistas, fundadas muitas vezes no “direito divino”, o qual, no antigo regime, o rei acreditava ter recebido seu poder de governar de um Deus ou dos Deuses, assim, não admitindo qualquer opinião ou limitação a ele imposta. Nesse sentido, se destaca a histórica frase atribuída ao popularmente conhecido “Rei Sol”, o monarca Luís XIV: “O Estado sou eu”, refletindo a ideia de poder absoluto e incontestável dos governantes antigos. Em mesmo diapasão seguiam os regimes autoritários, protagonizados por ditadores que, agiam de maneira semelhante ao monarca, fazendo aquilo que lhe convém, mesmo que em flagrante violação aos direitos fundamentais, sem muito se preocupar com consequências externas.

Em um Estado Democrático de direito, é indispensável que hajam regras organizacionais que estruturem o bom funcionamento social e ao mesmo tempo, limite a atuação dos seus governantes. Contudo, não se obriga necessariamente a existência de uma constituição escrita para que se exista a democracia. A Constituição do Reino Unido, por exemplo, é fundada unicamente no costume, não dispondo de texto escrito. Nesse sistema de direito, os políticos devem respeitar o direito baseado no costume com a mesma consideração que os governantes respeitam o direito escrito, como por exemplo o americano ou brasileiro.

1.1 CONCEPÇÃO DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO

Tradicionalmente Estado é uma associação humana, que habita determinado território sob a direção de uma autoridade que exerce controle central, sendo seus elementos: Povo, território e poder soberano. A lição clássica diz que o Estado é o poder institucionalizado, uma nação politicamente organizada.

Para Norberto Bobbio[1], o Estado é o resultado da construção de três elementos, sejam eles o povo, de quem o poder emana e dele decorrem direitos e deveres, o território que é o local delimitado onde se desenvolvem as relações sociais humanas e a soberania

Desde quando do problema do Estado passaram a tomar conta os juristas, o Estado tem sido definido através de três elementos constitutivos: o povo, o território e a soberania (conceito jurídico por excelência, elaborado por legistas e universalmente aceito pelos escritores de direito público). Para citar uma definição corrente e autorizada, o Estado é ‘um ordenamento jurídico destinado a exercer o poder soberano sobre um dado território, ao qual estão necessariamente subordinados os sujeitos a ele pertencentes’ [Mortati, 1969, p 23][2].

É entendido por parte da doutrina moderna que a formação de um Estado, organizado, independente e soberano se dá através da união de dois fatores: O poder político de seu povo e a incidência do Direito nas suas relações. Assim, é pacificamente correto o raciocínio de que o Estado advém do desejo humano, que através da convenção se condicionam como pessoas jurídicas abstratas. Nessa mesma linha de pensamento segue Dalmo de Abreu Dallari[3] quando definiu o conceito de como o Estado é formado:

Em face de todas as razões até aqui expostas, e tendo em conta a possibilidade e a conveniência de se acentuar o componente jurídico do Estado, sem perder de vista a presença necessária dos fatores não-jurídicos, parece-nos que se poderá conceituar o Estado como a ordem jurídica soberana que tem por fim o bem comum de um povo situado em determinado território.

Mais adiante em explanação na mesma obra, Dallari fala sobre a relação entre o poder, soberania e a organização do Estado:

A noção de poder está implícita na de soberania, que, no entanto, é referida como característica da própria ordem jurídica. A politicidade do Estado é afirmada na referência expressa ao bem comum, com a vinculação deste a um certo povo e, finalmente, territorialidade, limitadora da ação jurídica e política do Estado, está presente na menção a determinado território.

Assim, compilando todos os entendimentos do conceito do que é o Estado e suas relações de poder, fica explicito que Estado se traduz em poder. Deste modo, entende-se que o mesmo é elemento do Estado, tendo como principal característica a soberania, o que lhe permite a não estar sujeito a nenhum outro. Cita-se as sábias palavras do mestre José Jairo Gomes[4]:

Poder é a força ou energia capaz de alterar uma situação. […] Por sua vez, o vocábulo soberania designa o poder mais alto, o superpoder, o supremo poder. A soberania é, por tanto, uma qualidade do poder. […] Soberano é o poder supremo. Sem ele, não se concebe o Estado, que o enfeixa em nome do seu titular, o povo.

1.1 DESENVOLVIMENTO HISTÓRICO DA TEORIA DA SEPARAÇÃO DE PODERES

A separação dos poderes é no ordenamento jurídico brasileiro um dos princípios basilares do sistema constitucional, sendo responsável por toda organização e funcionamento do Estado.

Na Grécia antiga, já se falava no conceito de separação de poderes, quando Platão tratou do tema na obra “A República”, onde trazia à ótica do modelo de democracia como forma de governo. Posteriormente Aristóteles trouxe a discussão em sua obra “A política”, a qual admitia a existência de três esferas separadas responsáveis por tomar as decisões do Estado, sendo elas o “poder Deliberativo”, o “poder Executivo” e o “poder Judiciário”. Nesse modelo de Estado defendido por Aristóteles, o poder Deliberativo, que é equivalente ao atual poder Legislativo, exercendo uma função hierárquica superior aos demais poderes, devendo o Executivo estar responsável apenas por aplicar as normas e o Judiciário, responsável pela garantia de seu cumprimento. Porém, essa configuração de Estado que já conjecturava um estado democrático de direito, ainda concentrava seu poder na figura de uma pessoa, sendo esse o soberano. Assim, pode-se dizer que Aristóteles desenvolveu a ideia de um Estado com exercício de três funções distintas.

Foi no século XVII que veio a surgir, todavia, a primeira estruturação doutrinária no que diz respeito a separação de poderes, através da obra do filósofo John Locke, apontando quatro funções específicas exercidas por dois órgãos de poder, sendo a primeira, a função legislativa de competência do Parlamento, a segunda, executiva, exercida pelo monarca, na figura do rei, a terceira ainda uma chamada “função federativa” a qual atribuía-se a competência de tratar assuntos de guerra e paz, ligas e alianças, também era atribuída ao rei, assim como a quarta função que dizia respeito a prerrogativa “poder de fazer o bem público”. Sobre o modelo de estado adotado por Locke, aborda Dallari[1]:

Embora opondo-se expressamente ao absolutismo defendido por HOBBES, LOCKE não considerou anormal o reconhecimento de uma esfera de poder discricionário do governante, sem atentar para a circunstância de que o bem público, impossível de ser claramente definido, sempre seria um bom pretexto para as decisões absolutistas.

Em outro momento, adotou-se outro viés a clássica doutrina, concebendo então a doutrina tripartite, preceituando que não oponente ser visível a existência de uma separação entre as funções do Estado, deve ser distribuídas as atribuições aos três órgãos que devem ser legitimados a exercer seus trabalhos com independência, autonomia e igualdade, respeitando-se de maneira recíproca como esferas de poder de acordo com as suas competências, contrabalanceando e limitando o exercício do poder Estatal. Existem diversos doutrinadores que tratam do tema abordado, contudo, é na obra “O Espírito das Leis” de Montesquieu que os contornos se tornam mais específicos e determinados no que tange aos poderes do estado, sendo inclusive a teoria mais acolhida na contemporaneidade.

Charles-Louis de Secondat, mais conhecido como Montesquieu, foi o grande responsável por aprimorar a obra de Aristóteles com sua visão de Estado liberal burguês, utilizou da mesma ideia de três funções estatais, porém inovou ao dizer que tais funções estariam profundamente ligadas a três órgãos distintos, independentes entre si e autônomos. Ou seja, as funções não mais corresponderiam ao soberano, mas sim a um órgão, contrabalanceando ao absolutismo imperante da época e, servindo como verdadeiro dogma constitucional para as revoluções que iriam se suceder.

Coadunando com tal entendimento, segue citação do irreverente constitucionalista Pedro Lenza em sua obra Direito Constitucional Esquematizado[2]:

De acordo com essa teoria, cada Poder exercia uma função típica, inerente à sua natureza, atuando independente e autonomamente, não mais sendo permitido a um único órgão legislar, aplicar a lei e julgar, de modo unilateral, como se percebia no absolutismo.

Em tempos modernos a ideia de Constituição se desenvolveu em meio a importantes revoluções sociais com fim principal de limitar juridicamente a atuação e os poderes dos governantes, dado o histórico de sofrimento gerado pelos governos autoritários e absolutistas. É sob esse cenário que surge o constitucionalismo moderno, as revoluções burguesas na Inglaterra, Estados Unidos e França focavam na limitação do poder em favor dos direitos dos governados. Destaca-se como um marco histórico a Magna Carta de 1215 que surgiu após exigências da burguesia local em face ao então rei da época, conhecido como João Sem Terra, que coagido, cedeu à pressão e, concebeu direitos individuais aos barões por meio desse dispositivo legal.

Mais à frente, em 1789, a revolução francesa, ícone do ideal iluminista da “Igualdade, Liberdade e Fraternidade”, fincou nos meandros da história a ideia de uma teoria do poder constituinte. Interessante que no sistema constitucional francês, o poder legislativo seria o grande garantidor de Direitos, sendo esse então mais confiável que o poder judiciário.

Exemplo também do constitucionalismo moderno foi a Constituição dos Estados Unidos, aprovada pela Convenção da Filadélfia, em 1787 que inovou ao instituir o presidencialismo, e o sistema de freios e contrapesos associado ao conceito de separação dos poderes.

Pelas palavras de Cláudio Pereira de Souza Neto e Daniel Sarmento[3], percebe-se então que o constitucionalismo moderno se assenta principalmente na separação de poderes, na garantia de direitos individuais e na necessidade de legitimação dos governos pelo consentimento dos governados.

A separação de poderes foi concebida pelo constitucionalismo liberal para assegurar a moderação no exercício do poder, evitando o arbítrio dos governantes e protegendo a liberdade dos governados. A ideia essencial é a de que, ao se conferir funções estatais diferentes a órgão e pessoas diversas, evita-se uma concentração excessiva de poderes nas mãos de qualquer autoridade, afastando o risco de despotismo. […] Outra contribuição fundamental ao desenvolvimento do princípio em questão se deu por influência do constitucionalismo norte-americano, que concebeu a necessidade de instituição de mecanismos de ‘freios e contrapesos’ (checks and balances), que permitissem controles recíprocos entre os poderes de forma a evitar que qualquer um deles pudesse atuar abusivamente no campo das respectivas atribuições.

Ainda no tocante a separação dos poderes, aponta Souza Neto[4] que há uma nova vertente de constitucionalismo que transformou o princípio da separação dos poderes:

O novo constitucionalismo adotou leitura renovada do princípio da separação de poderes, aberto a arranjos institucionais alternativos desde que compatíveis com os valores que justificam tal princípio. Tais valores, por outro lado, foram enriquecidos por novas preocupações, que vão além da contenção do poder, envolvendo a legitimação democrática do governo, a eficiência da ação estatal e a sua aptidão para a proteção efetiva de direitos fundamentais.

A finalidade por trás da separação dos poderes é a de preservar a liberdade individual, combatendo a centralização do poder, afastando a tendência absolutista do trato da coisa pública, evitando assim que seja concentrado o poder na figura de uma pessoa ou determinada família, permitindo que seja, em tese, exercida em sua titularidade por representantes vindos do povo e eleitos por ele, como eficientemente retrata o jurista Pedro Lenza[5]:

O Estado que estabelece a separação dos poderes evita o despotismo e assume feições liberais. Do ponto de vista teórico, isso significa que na base da separação dos poderes encontra-se a tese da existência de nexo causal entre a divisão do poder e a liberdade individual. A separação dos poderes persegue esse objetivo de duas maneiras. Primeiro, impondo a colaboração e o consenso de várias autoridades estatais na tomada de decisões. Segundo, estabelecendo mecanismos de fiscalização e responsabilização recíproca dos poderes estatais, conforme o desenho institucional dos freios e contrapesos.

Ainda no que diz respeito ao modelo doutrinário norte-americana dos freios e contrapesos, decidiu o Supremo Tribunal Federal quando tratou da questão na Ação Direta de Inconstitucionalidade de nº 1.905:

EMENTA: SEPARAÇÃO E INDEPENDÊNCIA DOS PODERES – FREIOS E CONTRAPESOS – PARÂMETROS FEDERAIS IMPOSTOS AO ESTADO-MEMBRO. Os mecanismos de controle recíproco entre os Poderes, os ‘freios e contrapesos’ admissíveis na estruturação das unidades federadas, sobre constituírem matéria constitucional local, só se legitimam na medida em que guardem estreita similaridade com os previstos na Constituição da República: precedentes […]”

(ADI 1.905-MC, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, j. 19.11.1998, DJ de 05.11.2004).

Percebe-se então que o princípio da separação dos poderes hoje vai muito além da simples contenção de poder, visa-se também a legitimação dos atos das autoridades responsáveis por seu funcionamento. Por isso é interessante discutir até que ponto é legítimo ao Executivo, Legislativo e Judiciário, exercerem funções atípicas, muitas vezes extrapolando suas competências e invadindo o campo de atuação de outro poder.

1. DIVISÃO ESPACIAL DO PODER – ORGANIZAÇÃO E FUNCIONAMENTO DO ESTADO CONTEMPORÂNEO

O Estado moderno evoluiu e assumiu as mais diversas formas, com o desígnio de dirimir os problemas e desafios das complexas e conflituosas relações humanas, buscando com isto a paz social entre indivíduos e sociedade e, entre sociedade interna e Estado externo.

Nesse sentido, grandes mudanças ocorreram ao longo das épocas, de modo que o antigo regime cedeu espaço ao Estado liberal, seguido pelo Estado social, até chegar ao atual Estado subsidiário (ou neoliberal).

Assim, com o avanço evolutivo do Estado, as sucessões de acontecimentos evidenciaram que as alterações no comando do Estado, geraram a alternância do poder, ao longo da era moderna, passando agora a ser exercido por representantes oriundos do próprio povo, tornando o Estado um garantidor do funcionamento e do bem-estar social.

O intervencionismo resultante do Estado de bem-estar social, foi fundamental não só para a manutenção da vida de parte da população, que se encontrava em precariedade de saúde, educação, previdência, dentre outras necessidades básicas, mas como para a sobrevivência dos detentores do poder. Ao passo que o Estado supria as necessidades básicas de seus indivíduos, o ente estatal promovia o desenvolvimento da economia e riqueza social, minimizando assim as possibilidades de conflitos, gerando um mecanismo de controle social e de proteção ao patrimônio.

No Brasil, que desde as primeiras décadas do século passado utiliza o modelo intervencionista, foi adotada a forma republicana de governo, com sistema presidencialista e forma federativa de Estado, que se verifica no artigo 1.º, inciso V e parágrafo único da Constituição Federal Brasileira de 1988. Esse conceito é complementado pelo artigo 18 da carta magna, que estabelece a organização político-administrativa do Estado.

Demonstrada assim as características solidaristas do estado democrático de direito brasileiro, devidamente explanada a sua forma e estrutura político-administrativa, passa-se agora a tratar a distribuição do poder estatal aos demais entes como forma de instrumentos para cumprimento das responsabilidades.

1.1 OS TRÊS PODERES

Analisando a expressão “separação de poderes”, extrai-se a equivocada ideia de que é possível dividir o poder estatal em três partes iguais, e essas partes atuarem de maneira separada e autônoma, contudo, essa interpretação não deve prosperar, uma vez que o poder, atributo esse do Estado, que emana do povo, é uno, indivisível e indelegável, manifestando-se através de órgãos que exercem funções administrativas, legislativas e jurisdicionais.

Sobre o aspecto de divisão de poder versus separação de poder, pontua o respeitado constitucionalista Dalmo Dallari[1] quando diz:

É normal e necessário que haja muitos órgãos exercendo o poder soberano do Estado, mas a unidade do poder não se quebra por tal circunstância. Outro aspecto importante a considerar é que existe uma relação muito estreita entre as idéias de poder e de função do Estado, havendo mesmo quem sustente que é totalmente inadequado falar-se numa separação de poderes, quando o que existe de fato é apenas uma distribuição de funções.

A distribuição do poder aos órgãos ligados ao estado, conferido de autonomia e independência é considerada pelos adeptos do liberalismo político como verdadeira garantia de equilíbrio funcional político, pois mitiga os riscos do exercício do abuso de poder por parte do governante.

Os órgãos são utilizados pelo Estado como instrumentos para o cumprimento de suas responsabilidades atribuídas pela Constituição. Assim, todos os atos praticados pelo Estado contraem diversas configurações, a depender das funções exercidas por seus diferentes órgãos.

No Brasil, o Poder Legislativo, é distribuído entre Assembléias legislativas, Câmaras legislativas e pelo Senado, tendo como principais atribuições a criação de leis e a fiscalização dos atos do Poder Executivo, podendo votar leis orçamentárias e em casos excepcionais, julgar o Presidente da república.

O poder executivo, por sua vez, exercido pelos prefeitos, governadores e pelo Presidente da república, tem função de chefia de governo e chefia de Estado, respectivamente e, atos ligados a administração pública. Desenvolve trabalho concretizador, de forma a se realizar as ações legais a ele imbuídas em prol do bem da população. Orientado pelo princípio da separação dos poderes, foi conferido especialmente ao executivo a possibilidade de interferir nos processos legislativos através da ferramenta do veto, concebido pelo poder constituinte originário como forma de limitar a atuação do poder legislativo, impedindo que fosse instalada uma ditadura legislativa, a qual restaria ao executivo a simples condição de executor da lei.

O Poder Judiciário, presente na forma do Supremo Tribunal Federal, Superior Tribunal de Justiça, Tribunais Regionais Federais e Estaduais de Justiça e juízes federais e estaduais, tem por prerrogativa constitucional o exercício da jurisdição, atuando nos conflitos sociais como titulares de interesse para, de maneira imparcial, buscar a pacificação do problema que os permeia. O exercício dessa função se desenvolve mediante a processo, que resulta na aplicação da lei a lide por meio de sentença de mérito ou através de uma execução forçada. É também característica conferida ao Poder Judiciário o seu maior desprendimento dos demais poderes, como aborda o Ministro Gilmar Mendes[2]:

Destaca-se que, diferentemente do Legislativo e do Executivo, que se encontram em relação de certo entrelaçamento, o Poder Judiciário, ou a Jurisdição, é aquele que de forma mais inequívoca se singulariza com referência aos demais Poderes.

Constituição Brasileira de 1988 da grande importância ao tema, ao passo que dispõe como característica essencial e imutável a separação dos poderes. Isso se deve ao fato de estar elencada a separação dos poderes no rol taxativo de itens constitucionais que não podem sofrer alterações tendentes a sua abolição, podendo apenas serem estendidos, como pode ser observado no artigo 60parágrafo 4º, inciso III da CRFB.

1.1 FUNÇÕES TÍPICAS E ATÍPICAS

Como já tratado no item anterior, embora a clássica expressão “separação dos poderes” seja amplamente difundida, existe ainda alguns autores que entendem que o que ocorre de fato não é uma separação em si, mas sim uma divisão de poderes, conservando ainda a ideia de que o poder estatal é uno e indivisível. Outra banda entende que existe uma relação tênue entre poder e função do Estado, considerando que é totalmente inadequado falar em separação de poderes, quando no máximo o que ocorre é uma distribuição das funções exercidas pelo Estado. Nesse sentido pensava o economista francês Leroy Beaulieu, citado por José Afonso da Silva[1] (SILVA, 2005), quando dizia que as funções do estado, atribuídas aos órgãos estatais, resultaram em suma na divisão do trabalho.

Diante dessa nova roupagem de Estado, questionamentos foram levantados, uma vez que, o modelo de separação de poderes trazido por Montesquieu estava intimamente ligado a percepção do papel do Estado na vida social, já o trazido por Beaulieu ignora o aspecto de poder para se debruçar nas funções, organizando-o de uma forma a qual aumente o desempenho e a eficiência na realização de suas atribuições. Sobre o tema, discorre José Afonso da Silva[2]:

Cumpre, em primeiro lugar, não confundir distinção de funções do poder com divisão ou separação de poderes, embora ambas haja uma conexão necessária. A distinção de funções constitui especialização de tarefas governamentais à vista de sua natureza, sem considerar os órgãos que as exercem; quer dizer que existe sempre distinção de funções, que estejam concentradas num órgão apenas. A divisão de poderes consiste em confiar cada uma das funções governamentais (legislativa, executiva e jurisdicional) a órgãos diferentes, que tomam os nomes das respectivas funções, menos o Judiciário (órgão ou poder Legislativo, órgão ou poder Executivo e órgão ou poder Judiciário). Se as funções forem exercidas por um órgão apenas, tem-se concentração de poderes.

Em que pese da dinâmica social, levada pelas novas concepções históricas, passou-se a permitir maior interpretação entre a teoria trazida por Montesquieu, atenuando sua teoria que outrora pregava a separação pura e absoluta entre eles, agora permitindo além das suas funções naturais e típicas, inerentes as suas naturezas, cada órgão também exerce natureza atípica, tenha ela caráter legislativo, executivo ou jurídico. Sobre tal dinâmica, explana o respeitável José Afonso da Silva[3]:

A ampliação das atividades do Estado contemporâneo impôs nova visão da teoria da separação de poderes e novas formas de relacionamento entre os órgãos legislativos e executivos e destes com o judiciário, tanto que atualmente se prefere falar em colaboração de poderes, que é característica do parlamentarismo, em que o governo depende da confiança do parlamento (Câmara dos Deputados), enquanto, no presidencialismo, desenvolveram-se as técnicas da independência orgânica e harmonia dos poderes.

Apesar de soar com estranheza tal conceito, a nossa constituição trata o tema de forma taxativa, quando permite que, por exemplo, o Legislativo exerça funções executivas quando dispões sobre sua organização e funcionamento:

Art. 25. Os Estados organizam-se e regem-se pelas Constituições e leis que adotarem, observados os princípios desta Constituição.

[…]

§ 3º Compete às Assembleias Legislativas dispor sobre seu regimento interno, polícia e serviços administrativos de sua secretaria, e prover os respectivos cargos.

Ou quando exerce natureza jurisdicional, quando julga os crimes de responsabilidade praticados por Presidente e Vice-Presidente da República, bem como os Ministros de Estado e os Comandantes das três Forças Armadas, nos crimes de mesma natureza conexos com os praticados pelo Chefe do Executivo no exercício das suas funções:

Art. 52. Compete privativamente ao Senado Federal:

I – processar e julgar o Presidente e o Vice-Presidente da República nos crimes de responsabilidade, bem como os Ministros de Estado e os Comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica nos crimes da mesma natureza conexos com aqueles;

De mesmo modo, ocorre também com o poder Executivo, que tem como competência típica a prática de atos de chefia de Estado, Governo e, atos de administração. Pode exercer também funções legislativas através da edição de medidas provisórias e decretos regulamentares, que é descrita pela própria constituição como atividade competente ao processo legislativo como traz o artigo 59, inciso V da Constituição Federal do Brasil. Contudo, na mesma carta constitucional é prevista a edição de medidas provisórias pelo poder Executivo como reza o artigo 62 da CRFB de 88:

Art. 62. Em caso de relevância e urgência, o Presidente da República poderá adotar medidas provisórias, com força de lei, devendo submetê-las de imediato ao Congresso Nacional.

O Poder Judiciário, por sua vez, que possui competência típica o julgamento (função jurisdicional) das demandas sociais, dizendo do direito no caso concreto e resolução de conflitos que a ele são levados, interpretação constitucional (difusa e concentrada), tem por função atípica de natureza legislativa a criação do regimento interno de seus tribunais e natureza executiva a administração do seu quadro de serventuários e magistrados, decidindo sobre concessão de licenças e férias, como pode ser visto na alínea a e f do artigo 96, inciso I da Constituição Federal de 88:

Art. 96. Compete privativamente:

I – aos tribunais:

a) eleger seus órgãos diretivos e elaborar seus regimentos internos, com observância das normas de processo e das garantias processuais das partes, dispondo sobre a competência e o funcionamento dos respectivos órgãos jurisdicionais e administrativos; […]

f) conceder licença, férias e outros afastamentos a seus membros e aos juízes e servidores que lhes forem imediatamente vinculados;

Tem-se visto, cada vez com mais frequência, o poder judiciário na figura do STF, competente para exercer análise concentrada da constitucionalidade de leis e emendas constitucionais, bem como órgão de maior relevância do judiciário, considerado doutrinariamente como o grande “Guardião da Constituição”, sendo não o único, mas o de maior responsabilidade no trato do texto constitucional, seja como intérprete, seja como cumpridor de normas, vem através de algumas de suas decisões extrapolando a função jurisdicional que lhe cabe, exercendo muitas vezes a atividade normativa quando, por meio de suas decisões com caráter vinculante, ganha força de normas abstratas e generalizadas . Abaixo verifica-se decisão em que o STF entende não haver invasão de competência:

Decisão: Não ofende os princípios da separação e da harmonia entre os Poderes do Estado a decisão do Supremo Tribunal Federal que, em inquérito destinado a apurar ilícitos penais envolvendo deputado federal, determinou, sem prévia autorização da Mesa Diretora da Câmara dos Deputados, a coleta de dados telemáticos nas dependências dessa Casa Legislativa. Além de não haver determinação constitucional nesse sentido, a prévia autorização poderia, no caso, comprometer a eficácia da medida cautelar pela especial circunstância de o Presidente da Câmara, à época, estar ele próprio sendo investigado perante a Suprema Corte.”

[AC 4.005 AgR, rel. min. Teori Zavascki, j. 2-6-2016, P, DJE de 3-8-2016.]

Observa com relação a administração pública, que o STF tem “usurpado” competências do poder executivo a medida em que toma decisões próprias da administração pública, como é possível ver no julgado a seguir:

Decisão: Presente quadro de violação massiva e persistente de direitos fundamentais, decorrente de falhas estruturais e falência de políticas públicas e cuja modificação depende de medidas abrangentes de natureza normativa, administrativa e orçamentária, deve o sistema penitenciário nacional ser caraterizado como “estado de coisas inconstitucional”. (…) Ante a situação precária das penitenciárias, o interesse público direciona à liberação das verbas do Fundo Penitenciario Nacional.”

[ADPF 347 MC, rel. min. Marco Aurélio, j. 1º-12-2015, P, DJE de 19-2-2016.]

Faz-se necessário salientar que a responsabilidade pela resolução da situação tratada no ADPF 347 deve ser atribuída aos três Poderes (Legislativo, Executivo e Judiciário) e, aos entes federados em conjunto com a União. A inobservância ou até mesmo a ausência de ações legislativas, administrativas e orçamentárias diligentes representa um flagrante “falha estrutural” que se traduz em grave ofensa ao direito individual dos apenados, além de majoração de sua situação de cárcere. Desse modo, argumenta o STF que coube a ele tarefa de sair da inércia e atuar no sentido da resolução do conflito, sob pena de violação de preceito constitucional fundamental e, coordenar ações efetivas a fim de resolver o problema. Nesse caso, foi necessária a intervenção judicial em face da inépcia demonstrada pelas demais instituições (legislativas e administrativas). Porém, não obstante a decisão proferida, o Plenário entendeu que a Suprema Corte brasileira não pode substituir o papel do Legislativo e do Executivo no exercício de suas funções.

O que se discute é o minimalismo judicial, a legitimidade do Poderes do Judiciário para tomada de decisões executivas e legislativas, quando cabe autocontenção do poder judiciário, e a clara a dificuldade contramajoritaria de suas decisões, dado a que juízes e cortes não são eleitos democraticamente. Em mesma linha de pensamento, segue o entendimento de Claudio Pereira de Souza Neto e Daniel Sarmento em sua obra Direito Constitucional –Teoria, história e métodos de trabalho[4]:

A legitimidade democrática da jurisdição constitucional tem sido questionada em razão da apontada ‘dificuldade contramajoritária’ do Poder Judiciário, que decorre do fato de os juízes, apesar de não serem eleitos, podem invalidar as decisões adotadas pelo legislador escolhido pelo povo, invocando, muitas vezes, normas constitucionais de caráter aberto, que são objeto de leituras divergentes na sociedade.

1.1 CRÍTICAS AO SISTEMA DE SEPARAÇÃO DOS PODERES

Concebido pelo Estado Liberal, o princípio da separação dos poderes tem apresentado falhas funcionais, no que tange a ótica do constitucionalismo moderno, uma vez que o objetivo da separação é de salvaguardar os direitos dos cidadãos, concretizando as garantias individuais e coletivas ao passo de se buscar a real efetivação dos direitos fundamentais por atuação de tais poderes. Concatenando com tal pensamento, críticas são feitas ao atual modelo de sistema por Dalmo de Abreu Dallari[1]:

A primeira crítica feita ao sistema de separação de poderes é no sentido de que ele é meramente formalista, jamais tendo sido praticado. A análise do comportamento dos órgãos do Estado, mesmo onde a Constituição consagra enfaticamente a separação dos poderes, demonstra que sempre houve uma intensa interpenetração. Ou o órgão de um dos poderes pratica atos que, a rigor, seriam de outro, ou se verifica a influência de fatores extralegais, fazendo com que algum dos poderes predomine sobre os demais, guardando-se apenas a aparência de separação.

Fala-se muito da representatividade do povo a na participação da vida pública através dos processos democráticos, porém tal representatividade tem sido contestada, uma vez que tem se tornado cada vez mais comum a atuação de grupos políticos agindo de acordo com interesses notadamente inconsonantes com os anseios da população. Sobre tal aspecto, critica ainda Dallari[2]:

A sociedade plena de injustiças criada pelo liberalismo, com acentuadas desigualdades e a efetiva garantia de liberdade apenas para um pequeno número de privilegiados, foi construída à sombra da separação de poderes. Apesar desta, houve e tem havido executivos antidemocráticos e que transacionam de fato com o poder legislativo, sem quebra das normas constitucionais. Não raro, também o legislativo, dentro do sistema de separação de poderes, não tem a mínima representatividade, não sendo, portanto, democrático. E seu comportamento, muitas vezes, tem revelado que a emissão de atos gerais obedece às determinações ou conveniências do executivo. Assim, pois, a separação dos poderes não assegurou a liberdade individual nem o caráter democrático do Estado.

O dogma da separação entre os poderes tem sido relativizado no uso cotidiano das ferramentas de organização estatais, sob fundamento de resolução dos anseios sociais e inércia governamental, tem o Poder Judiciário adotado características ativistas, agindo não mediante a provocação a ele submetida, mas sim de maneira deliberada, atuando em prol de resoluções conflituosas concernentes a outro poder. Como exemplo claro, tem-se o caso na história recente do julgamento da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental de nº 54 pelo STF:

EMENTA: FETO ANENCÉFALO – INTERRUPÇÃO DA GRAVIDEZ – MULHER – LIBERDADE SEXUAL E REPRODUTIVA – SAÚDE – DIGNIDADE – AUTODETERMINAÇÃO – DIREITOS FUNDAMENTAIS – CRIME – INEXISTÊNCIA. Mostra-se inconstitucional interpretação de a interrupção da gravidez de feto anencéfalo ser conduta tipificada nos artigos 124126 e 128, incisos I e II, do Código Penal. [ADPF Nº 54/DF – Relator Min. MINISTRO MARCO AURÉLIO, 2012 – STF]

Diante dessa decisão, temos claramente o judiciário invadindo a competência legislativa, que com Código Penal, tipifica o aborto como crime. Percebe-se que a norma penal se encontra em ligeira desconformidade com a sociedade atual, visto que a população brasileira de hoje não é a mesma que a de 80 anos atrás. O que se faz necessário uma atualização normativa para que haja maior adequação legal, sendo a lei um reflexo dos anseios da sua população. Porém, tal competência para exercer a mudança necessária para descriminalizar a conduta de aborto de feto anencéfalo seria do poder Legislativo, seguindo o rito de votação, tal qual estabelece a Constituição Federal de 1988 e não do STF. O que pode acarretar numa crise democrática de representatividade.

Por se tratarem de representantes legítimos do povo, entende-se que caberia ao congresso nacional, na figura de seus parlamentares, a criação, alteração ou revogação de norma penal, o que não se ocorre no caso em questão. O STF através de uma decisão, mutacionou os tipos penais previstos nos artigos 124126 e 128 do Decreto Lei 2.848 (Código Penal), ao passo que descriminalizou uma determinada conduta sem que fosse alterada a redação, ou, acrescentada alguma excludente de ilicitude, culpabilidade ou punibilidade ao texto legal escrito.

A sustentação da separação dos poderes mantém uma organização do estado sem manter o funcionamento que determinou sua criação. Não se pode aceitar que o simples argumento de garantia dos direitos fundamentais ou de missão legislativa evocado pelo judiciário seja suficiente para que se possa transpassar as competências constitucionais atribuídas aos demais poderes, sob pena de relativização das normas escritas em detrimento das decisões judiciais que as sobrepõem.

 

1. A JUDICIALIZAÇÃO NA SOCIEDADE MODERNA E SUAS RELAÇÕES POLITICO-SOCIAIS

A análise da desestruturação das esferas públicas, com o surgimento do apelo social e moral, pode acarretar em possíveis respostas para dificuldade de se distinguir, nos dias atuais, aquilo que seja próprio da política e o que deve ser resguardado no âmbito do judiciário. O Poder Judiciário tem vem propondo a oferecer respostas políticas a problemas sociais de características por vezes públicas, vezes privadas. É o caso das concepções sobre a constituição familiar ou sobre a educação infantil, temas que ganharam destaque na esfera pública, de modo que tradicionalmente estavam ligados ao interesse privado. Antes de tratar o tema de maneira mais aprofundada, faz-se necessário compreender o que significa judicialização e seus fatores originários.

Trata-se por tanto de um fenômeno mundial que tem levado importantes questões sociais, morais e políticas a serem solucionadas pelo Judiciário, ao invés de ser solucionada por aqueles a quem lhe foi atribuída a competência originária para a resolução dessas questões, tais sejam o Executivo ou o Legislativo. Nesse contexto, significa dizer que, devido ao fenômeno da judicialização, são levados ao conhecimento do Poder Judiciário questões de matérias não resolvidas pelos demais poderes.

Para o ilustríssimo Ministro Luis Roberto Barroso[1], o fenômeno da judicialização se trata de um modus operandi, pelo qual o juiz é posto a desempenhar devido à falta de opção legislativa ou executiva.

A judicialização, no contexto brasileiro, é um fato, uma circunstância que decorre do modelo constitucional que se adotou, e não um exercício deliberado de vontade política […] o Judiciário decidiu porque era o que lhe cabia fazer, sem alternativa. Se uma norma constitucional permite que dela se deduza uma pretensão, subjetiva ou objetiva, ao juiz cabe dela conhecer, decidindo a matéria.

Tal modelo de atuação judicial se deve a três fatores essenciais: a redemocratização do país, a constitucionalização abrangente e o sistema brasileiro de controle de constitucionalidade.

No primeiro fator, com a chegada da Constituição de 1988, o Judiciário passou a ter novo papel dentro do cenário institucional brasileiro, deixando de ser um departamento técnico-especializado para se transformar num verdadeiro poder político. No segundo fator, matérias que antes eram tratadas apenas pelo processo político e pela legislação ordinária, agora passavam a pertencer a Constituição, uma vez que se faziam presentes no texto legal, ainda que de conteúdos não essencialmente constitucionais. O terceiro e último fator faz referência a abrangência do controle de constitucionalidade brasileiro, o qual combina aspectos do sistema americano (incidental e difuso) e europeu (concentrado).

Em suma, de maneira mais sucinta, cabe dizer que entende-se por judicialização, as questões sociais de cunho executivo ou legislativo não resolvidas que, na busca pela pacificação da insegurança jurídico-normativa, é desembocado como recurso final a apreciação pelo poder judiciário.

1.1 O FENÔMENO DO ATIVISMO JUDICIAL

No início do século XIX nascia nos Estados Unidos o pensamento filosófico do que hoje se conhece como ativismo judicial. Porém na época, ainda sem uma nomenclatura própria, caiu-se no esquecimento.

Em meados do século XX, um grupo de intelectuais da escola de Frankfurt, defendendo a proteção à cultura ocidental opressora e fascista, desenvolveu um novo modelo de interpretação normativa. Esse modelo era pautado numa atuação mais participativa do judiciário, desenvolvendo protagonismo frente as demandas sociais.

Após a instalação do regime nazista na Alemanha, migraram-se para os Estados Unidos onde levaram consigo a teoria do desconstrucionismo, do filósofo francês Ferdinand Socir, a qual defendia que nenhum texto tem significado real. Para essa teoria o sentido de uma palavra é dado através da diferença dela em relação a todas as outras palavras.

A primeira vez que se falou em ativismo judicial foi em 1947, pelo historiador americano do partido democrata Arthur Schlesinger Jr., em um artigo voltado a comentar as linhas de atuação da Suprema Corte dos Estados Unidos.

O movimento pró-ativista defende que faz necessária tal postura do judiciário a fim de conduzir a atividade judicante, ainda que a despeito de regras menos genéricas prevista pelo constituinte ou legislador originário, valendo-se de princípios gerais estampados ou não no texto constitucional a fim de dirimir a situação controversa em questão.

Destaca-se como um dos maiores defensores do ativismo judicial no sistema jurídico brasileiro o professor e Ministro do Supremo Tribunal Federal, Luis Roberto Barroso[1], que deixa bem claro o seu posicionamento ao afirmar:

A idéia de ativismo judicial está associada a uma participação mais ampla e intensa do Judiciário na concretização dos valores e fins constitucionais, com maior interferência no espaço de atuação dos outros dois Poderes.

Para o Ministro[2], tal posicionamento beneficia a sociedade, uma vez que coloca o judiciário em posição atuante, concatenada com os principais anseios da população.

O fenômeno tem uma face positiva: o Judiciário está atendendo a demandas da sociedade que não puderam ser satisfeitas pelo parlamento, em temas como greve no serviço público, eliminação do nepotismo ou regras eleitorais.

Sobre o ativismo judicial então pode-se concluir que é a tendência que o judiciário tem de interferir no funcionamento de outros poderes a partir da busca de um propósito.

1.1 DO ATIVISMO JUDICIAL E A AUTOCONTENÇÃO

União estável homoafetiva, pesquisa com células tronco, aborto de fetos anencéfalos, ficha limpa e infidelidade partidária são alguns dos posicionamentos substancialistas do Poder Judiciário brasileiro que geraram grande polêmica nos últimos anos. Assim, tem os tribunais, sobretudo o Supremo Tribunal Federal, desempenhado um papel ativista na vida institucional brasileira.

No que diz respeito ao ativismo, classifica a doutrina em dois tipos distintos: o ativismo inovador e o ativismo revelador. Sobre o ativismo inovador, pode-se destacar que são decisões que não se baseiam em princípios constitucionais ou qualquer outro parâmetro para tanto. São manifestamente contrárias ao Estado de Direito. O ativismo revelador, por sua vez, é aquele que através de sua decisão, o juiz cria uma norma baseada em princípios constitucionais ou a partir de uma regra lacunosa, sendo esse o modelo utilizado por juízes brasileiros. A título de exemplo, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal no julgamento das Ações Diretas de Inconstitucionalidade 3.999 e 4.086, que versam sobre a perda do cargo de parlamentar por infidelidade partidária, fundamentando a decisão em preceitos constitucionais.

Outro exemplo de como o judiciário normatiza a sociedade é a súmula vinculante de número 11[1], fruto do julgamento do Habeas Corpus nº 91.952 pela suprema corte brasileira, que decidiu ser licito o uso de algemas apenas em casos excepcionais, sob pena de constrangimento físico ou moral do preso.

No contexto jurídico americano, destacam-se dois grandes nomes do direito mundial rivalizando posições filosóficas acerca do ativismo, ambos juízes da Suprema Corte americana, o progressista Thurgood Marshall (de 1967 a 1991), primeiro negro da história da corte e, o conservador Antonin Scalia (de 1986 a 2016).

Para Marshall, caberia ao juiz a resolução das demandas sociais por meio de controle difuso de constitucionalidade toda vez em que se fosse posto os direitos e garantias fundamentas em risco. Inclusive é do juiz Marshall[2] a célebre frase que melhor sintetiza o conceito de ativismo judicial: “Você faz o que acha que é certo e deixar que a lei aja”. Ou seja, você faz o que suas convicções humanas e valores morais acreditam que seja certo e depois deixa que a lei se atualize para acompanhar a decisão.

Contrário a tal entendimento, Antonin Scalia[3] defendia a leitura do texto da lei com interpretação restritiva ao propósito pelo qual foi escrita. Em sua visão, o maior problema do ativismo judicial é que o judiciário interpreta a lei de acordo com um fim que se busca. Desse modo, Scalia desenvolveu uma nomenclatura própria para os juízes ativistas, chamando-os de “propositivists”. Os juízes “propositivistas” extraem o sentido do texto de acordo com um propósito que eles buscam, e não um propósito a partir do sentido de um texto.

Com esse modelo de interpretar as leis, o Poder Judiciário tem tirado o protagonismo no cenário político, invadindo as áreas de atuação dos outros poderes do Estado, sob a guarda da inevitabilidade.

Tem-se visto um judiciário atuante no orçamento, interferindo em políticas públicas e controlando o funcionamento das casas legislativas, falando-se até em judicialização da política. E tudo isso pautado na ideia de que o STF em específico, tem poder para interpretar a norma constitucional, que é essencialmente aberta, e que pode ter leituras divergentes na sociedade, pois a vagueza e abertura das normas constitucionais acabam por conferir aos juízes um “poder constituinte permanente”, quando mudam de ofício o entendimento do texto constitucional da maneira que lhes convém. A nova hermenêutica constitucional foge de uma interpretação dedutiva. Todo intérprete tem o poder de criar e, inevitavelmente opõe suas preferências políticas e valorativas e suas pré-compreensões ao emitir decisões jurisdicionais. Nessa mesma linha de raciocínio entendem Claudio Pereira de Souza Neto e Daniel Sarmento[4] quando dizem:

A crítica ao controle jurisdicional de constitucionalidade insiste que, em casos assim, a decisão sobre a interpretação mais correta da Constituição deve caber ao próprio povo ou seus representantes eleitos e não a magistrados.

Observando tais ações pela ótica do poder judiciário como defensor da harmonia constitucional e do bom funcionamento nas organizações públicas, o controle de constitucionalidade se apoia na ideia de que o exercício de sua atividade é um pressuposto para o funcionamento da democracia. O judiciário seria o órgão responsável por tutelar o funcionamento da democracia. Inclusive pela teoria do substancialísmo[5], o judiciário tem que ter um papel mais ativo, concordando que, no campo hermenêutico, o judiciário deve dar respostas as grandes controvérsias, interpretando de forma abrangente as normas constitucionais.

Em sentido oposto, o procedimentalismo defende que as decisões substanciais devem pertencer ao povo, que é representado pela classe política, eleita através do voto direto, sustentando inclusive a autocontenção do judiciário. Nessa linha segue Claudio Pereira de Souza Neto e Daniel Sarmento quando dizem[6]:

Os procedimentalistas defendem um papel mais modesto para a jurisdição constitucional, sustentando que ela deve adotar uma postura de autocontenção, a não ser quando estiver em jogo a defesa dos pressupostos de funcionamento da própria democracia.

Um dos mais importantes autores procedimentalistas, o filósofo alemão Jürgen Habermas[7] aponta que o papel da jurisdição constitucional é o de “guardião da democracia deliberativa”, pois, as condições para uma política deliberativa e para a concretização de um ideal republicano só acontecem por meio da legitimidade de um processo de formação democrática da opinião pública. A jurisdição tem que garantir os pressupostos comunicativos e as condições de debates. Isso permite uma escolha livre.

Sobre democracia deliberativa, nas palavras de Claudio Pereira de Souza Neto e Daniel Sarmento[8], entende-se que:

A democracia é deliberativa, baseada no diálogo social e nas interações travadas, pelos cidadãos no espaço público. É um embate entre argumentos e contra-argumentos no espaço públicos e nos fóruns oficiais, que racionaliza e legitima o processo decisório democrático. Na deliberação, os diversos participantes podem expor os seus pontos de vista e criticar os argumentos oferecidos pelos demais, com liberdade e igualdade. […] Para Habermas, o contexto de pluralismo faz com que a fonte de toda legitimidade só possa repousar no processo democrático de produção normativa.

Diante de todos os argumentos expostos, tanto a favor quanto contrários ao entendimento de desrespeito ao princípio da separação dos poderes, ganham forças as correntes que tratam do minimalismo judicial e da autocontenção. O que favorece posturas modestas dos juízes e a aversão a decisões abstratas e genéricas que invadam o campo de atuação restrito ao poder democrático legislativo. Nas palavras de Claudio Pereira de Souza Neto e Daniel Sarmento[9]:

Outro argumento importante do minimalismo é o de que ele estimula a deliberação na esfera pública, favorecendo a democracia. Nessa linha, afirma-se que decisões muito amplas do Poder Judiciário em matéria constitucional subtrairiam da sociedade e dos poderes representativos a possibilidade de discussão e de decisão sobre temas relevantes.

Face a tais conceitos, pode-se então entender por um ativista judicial o juiz que ao mesmo tempo que é ativo, é humano, é emotivo, que age a partir de suas convicções mais profundas, e que quer mudar a política, a economia e transformar a conjuntura social através de suas decisões.

1. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Não obstante todo o conteúdo apresentado, com opiniões pró-ativismo, a favor de uma atuação mais presente do judiciário nas relações humanas, como opiniões contra, e aqui destaca-se a doutrina procedimentalista que defendem uma atuação contenciosa do judiciário, faz-se aqui uma crítica a todo o modelo apresentado, defendendo um judiciário que participe das decisões sociais quando provocado, mas que não ultrapasse a sua esfera de competência para tal.

O próprio termo “ativismo” judicial remete a ideia de juiz ativo, atuante, competente, engajado com os interesses sociais. Ao passo que o oposto a esse conceito, leia-se “passivismo” judicial, transmite a ideia de um juiz passivo, que não assume responsabilidades, que não cumpre prazos, não decide ou sequer se dirige a vara em que atua para trabalhar. Desse modo, sequer pode ser admitida a expressão antagônica, “passivismo”, dada a sua conotação depreciativa. Porém, ao judiciário não compete ser ativo ou passivo. Não é de sua característica a atividade ou passividade. Já dizia de maneira brilhante Montesquieu que a principal característica do Poder Judiciário é a sua inércia, devendo agir apenas quando for provocado, não devendo interferir nos outros poderes ou na sociedade exceto, se forem apresentar ao juiz algum conflito (MONTESQUIEU, 1748).

O reflexo do ativismo na sociedade brasileira se faz altamente presente na figura do Supremo Tribunal Federal, que tem demonstrado uma posição pró-ativista. O que pode ser vislumbrado com a fala do Ministro Barroso[1] quando diz que o judiciário deve aplicar diretamente a constituição a situações que não estão contempladas em seu texto. Adotar uma ação direta sobre o executivo, impondo-lhe condutas ou abstenções em matérias de políticas públicas. Ou seja, o judiciário deve mandar fazer ou se abster de uma atitude com base em “valores” constitucionais que não estão na lei. É o que pode ser observado na questão das quotas raciais, demarcação de terras indígenas, o reconhecimento de união estável de pessoas de mesmo sexo com entidade familiar e a discussão sobre o bullying homossexual nas escolas.

Como exemplo da história brasileira recente, tem-se o caso do afastamento de um senador no exercício do seu mandato, sendo impostas a ele medidas restritivas de direito pelo Supremo Tribunal Federal, por motivos não inerentes a atividade parlamentar, não sendo sequer enquadrado ao caso a situação de flagrante delito por crime inafiançável, como estabelece o artigo 53parágrafo 2º da Constituição. Há de se frisar aqui que apenas é cabível o afastamento e uma posterior pena restritiva de direitos em caso de condenação pela casa legislativa a qual pertence o parlamentar em questão, fato esse que nem de longe se vislumbrou.

Com tal posicionamento, o STF passa por cima de dois preceitos fundamentais do Estado Democrático de Direito: a separação dos poderes, e aqui faz-se referência ao parágrafo 2º do artigo 55 da Constituição Federal, que preceitua o julgamento político e não judicial e, o total desrespeito com as normas constitucionais, daquele que deveria ser, em via de regra, o guardião dos direitos e garantias fundamentais contidos na Carta Magna.

Esse tipo de comportamento proativo do poder judiciário gera uma relativização do conjunto normativo, além de diminuir a importância dos processos legislativos oriundos da classe política. O que se vislumbra na vida prática é que o Supremo Tribunal Federal é de fato um órgão de poder supremo, quase divino, ao qual todas as demais esferas de poderes se concentram e se sobrepõem as suas decisões.

É de suma importância frisar que não há democracia sólida sem uma plena atividade política, assim como também não há sem um Congresso combativo e atuante, ou um Judiciário intempestivo e desrespeitoso, sendo indispensável a todos a credibilidade investida aos responsáveis por atuar na máquina pública.

Assim, as críticas a esse modelo de judiciário são direcionadas para o risco de ilegitimidade democrática, polarização da justiça e a fragilização das instituições estatais. Isso se deve ao fato de poder ser alterado o sentido de todo o ordenamento jurídico sem que seja emendada a constituição pela atuação legislativa. O desejo de onze ministros se sobrepõe a vontade de todo um povo.

Pensa-se no ativismo judicial como uma jurisprudência criativa, que saia da literalidade da lei, da interpretação sistemática e teleológica da norma. O direito moderno está essencialmente ligado ao texto escrito, ao passo que aquilo que preceitua o texto legal não pode ser ignorado, ou distorcido.

Não oponente a discricionariedade a qual é inerente a atividade jurisdicional, sendo perfeitamente possível a utilização de alguma dose de elementos subjetivistas de ordem gramatical, sistemático ou histórico, o mesmo não se pode dizer ao abuso de tais ferramentas a fim de distorcer o direito contido na norma, pois nesse caso, já não mais se trata de uso da discricionariedade, mas sim do subjetivismo por completo. Podendo-se dizer que, sob essa ótica, cria-se então um estado de ruptura na estrutura de poderes brasileira, no sentido de que o órgão responsável pela interpretação e aplicação da lei, na realidade não a interpreta, mas cria totalmente novo texto de acordo com suas interpretações subjetivistas.

A título exemplificativo, traz-se a baila o julgado da ADI 4277 e ADPF 132, que trata do reconhecimento de união estável entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar. Entendimento que, embora de acordo com a realidade social mundial, vai de encontro ao que preceitua o artigo 226parágrafo 3º da Constituição Federal. Sobre o tema, ressalta o respeitável constitucionalista Ives Gandra Da Silva Martins[2]:

Ora, não só o STF mudou a Constituição, como incinerou a vontade do constituinte ao incluir um novo tipo de união não agasalhada pela definição de entidade familiar, desfigurando o conceito de família como base de sociedade, ou seja, de união entre homem e mulher capaz de gerar prole. Afetou, portanto, os § 1º, 2º, 3º, 4º e 5º do artigo 226

O que se questiona é o poder do crescente ativismo jurisdicional, seja no âmbito do controle de constitucionalidade, ou por meio das demais decisões. A sociedade não entende e não está preparada para a perspectiva de que o judiciário também tem poder para interpretar normas constitucionais e inevitavelmente normatizar condutas humanas por meio de decisões gerais e abstratas. Em tempos de avanço do direito constitucional, e não oponente a busca de uma teoria que compreenda, que interprete a constituição, não é uma tarefa restrita apenas a um órgão, inclusive fala-se em sociedade aberta dos interpretes da constituição[3]. São tempos de aproximação entre o constitucionalismo e a democracia, e por que não, de nova interpretação do princípio da separação dos poderes? Importante é nunca deixar de questionar a legitimidade e limites da atuação do poder judiciário a fim de garantir uma maior limitação ao poder estatal, devolvendo-o para aquele a que lhe é de direito: O povo.

1. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BARROSO, Luís Roberto. Judicialização, Ativismo Judicial e Legitimidade Democrática. Direito Franca. Em: 02 fevereiro de 2009. Disponível em: <http://www.direitofranca.br/direitonovo/FKCEimagens/file/ArtigoBarroso_para_Selecao.pdf>. Acesso dia 06 de novembro de 2017.

CONSTITUIÇÃO DA REPUBLICA FEDERATIVA DO BRASIL DE 1988. Disponível em:< http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituição/constituição.htm>. Acesso em: 08 de novembro de 2017.

 

Comentários
você pode gostar também