‘Minha ação muda o paradigma do delegado como uma figura que só prende’

ENTREVISTA

‘Minha ação muda o paradigma do delegado como uma figura que só prende’

Jaime Pimentel Júnior cumpriu um mandado de prisão em aberto, mas impetrou HC por acreditar que preso é inocente

habeas corpus, delegado.
Crédito: Arquivo / Jaime Pimentel Júnior

O delegado da Polícia Civil de São Paulo Jaime Pimentel Júnior, que atua no setor de investigações gerais da Delegacia Seccional de Mogi das Cruzes, vivenciou um momento único em dez anos no cargo: constatou fortes indícios de que a pessoa que ele acabara de prender, devido a um mandado de prisão em aberto, era inocente.

No dia 20 de agosto, Marcelo, um pedreiro de 45 anos, foi detido no Poupatempo de Mogi das Cruzes, quando tentava retirar a segunda via do RG. Segundo boletim de ocorrência, os funcionários, durante o atendimento, identificaram um mandado de prisão em seu nome, expedido pela comarca de Cristalina, em Goiás, por tentativa de furto qualificado, em 2004. Por isso, acionaram os policiais do Grupo Armado de Repressão a Roubos e Assaltos (GARRA).

No 1º DP de Mogi das Cruzes, o delegado notou que havia divergência entre o documento apresentado pelo pedreiro e a data de nascimento do mandado de prisão preventiva.

O detido afirmou que nunca visitou Goiás e desconhecia os acontecimentos apresentados no documento e acrescentou que possuía um irmão que, pela índole, poderia ter se passado por ele no momento. “Vendo a data de nascimento do irmão, coincidiu com a data do nascimento do mandado”, conta Jaime Pimentel, em entrevista ao JOTA.

O delegado tentou entrar em contato com a juíza Débora Letícia Dias Veríssimo, que expediu a prisão, mas não conseguiu contatá-la. O Fórum Criminal da comarca de Cristalina foi acionado para enviar o prontuário do preso, mas não enviou o documento à delegacia. O advogado Leonardo Calixto Gonçalves, que atuou no caso em 2004, recomendou que o mandado de prisão fosse cumprido.

“Diante de todo o cenário e exaurida todas as formas para poder sanar a dúvida quanto à pessoa detida, esta autoridade policial determinou o cumprimento do mandado, sendo o preso recolhido a cadeia pública de Mogi das Cruzes onde permanecerá a disposição da Justiça”, consta no boletim de ocorrência.

Após cumprir ao mandado de prisão, o delegado impetrou habeas corpus em benefício do preso, por acreditar que o irmão do pedreiro usou o nome dele para incriminá-lo. “A minha ação muda o paradigma da visão do delegado como uma figura que só prende. Ele também pode ser um garantidor da liberdade”, afirmou.

“A minha maior preocupação, de coração, foi deixar uma pessoa presa injustamente”, confessa. Pimental encerrou a conversa com a reportagem do JOTA com uma frase do volume II de Dom Quixote, de Miguel de Cervantes: “A liberdade é um dos mais preciosos dons que os céus deram aos homens. Com ela não se pode igualar os tesouros que a terra esconde, nem que o mal encobre. Pela liberdade, assim como pela honra, pode-se e deve-se arriscar a vida. Já o cativeiro é o maior mal que pôde vir aos homens”.

Até a publicação desta entrevista, Marcelo ainda se encontrava preso.

Leia abaixo a entrevista na íntegra:

É a primeira vez que o senhor impetra um habeas corpus como delegado?

Sim. Eu acredito que foi o primeiro habeas corpus impetrado por delegado no Brasil. Eu não tenho conhecimento de outro delegado que tenha impetrado habeas corpus. A minha ação muda o paradigma da visão do delegado como uma figura que só prende. Ele também pode ser um garantidor da liberdade.

Como os seus colegas reagiram à sua decisão de impetrar um habeas corpus?

Os meus colegas mais próximas elogiaram porque cumpri o artigo 7 da convenção americana de direitos humanos.

Como se deu a prisão do Marcelo?
Ele entrou na delegacia totalmente perdido, não conseguia entender o que estava acontecendo com ele. Quando nós explicamos, ele ficou transtornado. “Olha, é injusto isso, eu sou inocente, eu nunca estive no estado de Goiás”, disse. Explicou que nasceu em Minas Gerais e de lá foi para São Paulo, e há 7 anos mora em Guararema, aqui no Alto Tietê. Você percebia na pessoa que estava ali clamando para que fosse feita justiça com ela.

 

O que aconteceu no caso?
A pessoa se mostrava muito indignada com a situação. Começamos a investigar a vida dele e descobrimos na verdade que há sete anos ele mora na cidade de Guararema, pedreiro, tem carteira de trabalho assinada, uma pessoa que tinha uma boa índole. E ele alegava que nunca tinha ido para Goiás. Nasceu em Minas Gerais e residia em Guararema. Diante disso, começamos a analisar a vida dele e percebemos que ele tinha um irmão.

Perguntamos sobre o irmão dele, ele respondeu que era uma irmão de má-índole e que, possivelmente, teria utilizado o documento dele. Vendo a data de nascimento do irmão, coincidiu com a data do nascimento do mandado. Aí, eu entrei em contato com a delegacia da área.

O inquérito, de 2004, já tinha ido para o fórum. Então, entrei em contato com o fórum de Cristalina, eles me encaminharam todas as peças do inquérito, inclusive a denúncia do promotor. E eu percebi que na prisão em flagrante não houve apresentação de documento por parte do indiciado.

Quando acontece isso, a polícia faz as pesquisas e quando a pessoa não possui documento no estado, a gente acaba levando em veracidade o que o indiciado, a pessoa presa, fala. Acaba criando o que chamamos de RG criminal.

É muito provável que o irmão dele deva ter praticado o crime lá, passado os dados do irmão, porque iria constar regime criminal no nome dele, e assim o fato se desenrolou. Eu pedi a planilha de identificação criminal, que, nesses casos, são obrigatórias, mas eles não dispunham lá no momento, porque eu queria fazer o confronto com os digitais apresentados por ele [pedreiro] aqui, que coletamos, com as de lá. Mas não conseguimos esse tipo de diligência.

Tentei falar com a juíza do caso, que expediu o mandado de prisão, também não conseguimos, e falei com o defensor, que estava atuando no flagrante. O defensor não estava em posse de nenhuma informação que pudesse nos ajudar.

E porque o senhor decidiu impetrar um habeas corpus em favor de uma pessoa que tinha acabado de prender?

Diante de tudo isso, eu acabei pensando o seguinte: eu tenho que cumprir a lei, quem pode revogar mandado de prisão, é somente a autoridade judiciária, mas dentro da minha atribuição como delegado de polícia, garantindo os direitos fundamentais, eu dou cumprimento ao mandado, mas vou impetrar um habeas corpus em favor dessa pessoa.

Por que o senhor não conseguiu ter acesso à planilha?

Eles não dispunham na hora para me informar. O fato aconteceu em 2004. A gente está falando de uma tentativa de furto que aconteceu em 2004. Faz uns 15 anos que isso está rolando.

Porque o senhor cumpriu o mandado de prisão?

Nós temos duas garantias vinculadas ao direito à liberdade. A primeira: somente sermos presos em situação de flagrante delito por duas autoridades, a judiciária ou a autoridade policial, que é o delegado de polícia. A segunda forma de garantia da nossa liberdade, sermos presos somente por mandado expedido pela autoridade judiciária. Vamos supor que duas dessas garantias sejam feridas, qual é o remédio? O habeas corpus.

No caso, quem poderia revogar aquele mandado de prisão, a juíza. Tanto que eu peço isso, primeiramente, no pedido de habeas corpus. Olha, juíza, detectamos fortes indícios. Não há prova, mas há fortes indícios que a pessoa que está aqui e que figura no seu mandado de prisão, não é a mesma que praticou o fato. Eu falo: “Se assim a senhora não entender, a senhora se tornará autoridade coatora e eu peço que encaminhe isso para o Tribunal de Justiça apreciar”.

Eu fui o impetrante do habeas corpus em favor do paciente Marcelo, tendo em vista que o mandado de prisão, que constava o nome dele, não significa que ele é a pessoa que praticou o fato.

Se o senhor não cumprisse o mandado de prisão, o que aconteceria?

Como há um mandado de prisão, eu sou obrigado. Estou sendo mandado a cumprir aquela prisão, somente podendo revogar quem a expediu, ou seja, um juiz, ou então ser cassada por um tribunal. Eu sou funcionário público e, por lei, delegado de polícia tem de cumprir o mandado. Então, se eu não cumprisse, responderia por crime de prevaricação, que é me omitir diante de um fato que devo cumprir.

Se o senhor tivesse conseguido entrar em contato com a juíza antes, o que ela poderia ter feito?

O Poder Judiciário teria duas opções, ao meu ver, ou revogar o mandado de prisão, concedendo um habeas corpus de ofício, podemos dizer assim. Na verdade, ela não conseguiria, porque foi ela que expediu a prisão. Então, é revogar o mandado de prisão, ou manter a prisão, porque pode ser que se entenda que a questão depende de prova.

Se a questão depende de prova, a doutrina fala que o habeas corpus não seria o remédio cabível. Então, a juíza poderia alegar isso. Olha, depende de prova, logo não vou apreciar essa situação de revogabilidade da prisão. Mas mesmo assim eu tentei dar outra alternativa que é: olha juíza, peço o álvara de soltura, mas imponho outra medida cautelar, como, por exemplo, o monitoramento eletrônico ou comparecimento periódico no fórum.

A minha maior preocupação, de coração, foi não deixar uma pessoa presa injustamente. A gente vê casos em que acontece.

Esses casos são comuns?

Não dá para dizer que são comuns, porque não é cotidiano, mas acontece. E acontecendo um já é um absurdo. A gente tem que interpretar assim. Porque um dos nossos maiores direitos é a liberdade. E acontecer um caso injusto já é motivo de total alvoroço por parte das instituições para poder resguardar isso.

Vamos supor que você tivesse um irmão, e seu irmão praticasse um crime, no estado de Minas Gerais. Vão pesquisar [a polícia], como o documento dele é daqui [de São Paulo], não ia ter como Minas Gerais conseguir os dados. E aí, ele vai informar o seu nome lá. Muito que bem, vai preso, solta na audiência de custódia, ele vai embora com uma medida de comparecer no fórum. Não comparecendo ao fórum, vem um mandado de prisão preventiva, porque você está descumprindo uma medida que o juiz te impôs. Aí, [a polícia] vem te buscar aqui. E você responde: “Mas eu nunca fui para Minas Gerais”. Então, você entende a situação que eu tive na minha frente.

Sobre o irmão dele, o que vocês descobriram?

Ele disse que o irmão é afastado da família. Ninguém sabe onde ele está, ninguém conversa com ele. É uma família muito pobre. Estamos falando de pessoas com problemas familiares e de baixíssima renda, sem qualquer apoio tanto financeiro quanto familiar.

É possível que esse homem processe o Estado por ter sido preso por um crime que supostamente não cometeu?

Eu não consigo falar sobre isso, por fazer parte do Estado. Por fazer parte do Estado, não posso apreciar sobre isso.

Como solucionar esta questão do RG criminal?

Isso é um fato que tem previsão legal. O Código do Processo Penal autoriza que façamos qualquer medida com as informações que dispomos no momento. Vamos supor que a pessoa não queira nem indicar nome, nem nada. Então, teremos que descrever as características físicas dela. Essa é a solução, porque a pessoa pode simplesmente chegar na delegacia e falar “não quero falar nada”. Não tem como forçar alguém a dar a suas qualificações. Há a doutrina que fala que a pessoa é obrigada a prestar suas qualificações. Inclusive, tem uma contravenção penal se a pessoa se negar a se identificar. Mas, não dá para forçar nada. Então, a gente tem que fazer com o que tem.

Qual é a grande crítica que eu faço, relacionados às questões de documentos de identificação que são próprias de estado, por exemplo, o documento de identificação do Estado de São Paulo, não possui comunicação com outros estados, e de outros estados não possuem comunicação conosco. Eu tive dificuldade de pesquisar o irmão dele, porque o RG é de Minas Gerais e eu não tenho banco de dados aqui em São Paulo sobre Minas Gerais. O que poderíamos melhorar é exatamente o compartilhamento de dados, principalmente, voltados para a identificação.

O habeas corpus foi deferido?

Pelo o que eu pesquisei no Tribunal de Justiça, já foi juntado nos autos a nossa manifestação e a juíza abriu para a defesa se manifestar. Isso que está na pesquisa que eu fiz no TJ.

Comentários
você pode gostar também