A Covid-19 avança mais depressa no Brasil do que a maioria das previsões indicava até agora. As mais recentes análises da evolução da epidemia, apresentadas na quarta-feira e antecipadas pelo site de ÉPOCA, indicam uma situação gravíssima à medida que a pandemia se estabelece nas capitais e nos municípios do interior. Análises do especialista em modelagem computacional Domingos Alves, líder do Laboratório de Inteligência em Saúde (LIS) da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, da Universidade de São Paulo (USP), que trabalha com vários pesquisadores de universidades no Brasil, indicam que nas cidades de São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília o vírus se propaga muito mais rapidamente do que se projetava há 20 dias. Somadas, as três poderiam chegar a 16 mil casos já na próxima semana. Porém, medidas de isolamento social podem reduzir esse número. “Estamos vivendo uma crise sem precedentes na saúde pública mundial. As medidas restritivas adotadas em diversos países baseadas nos estudos científicos vêm dando resultados concretos. Acreditem na ciência! Ela pode nos ajudar a reduzir o sofrimento e salvar vidas. Permaneçam em casa”, diz o artigo assinado por alguns dos mais respeitados e experientes especialistas em saúde do país. O artigo é assinado por Afrânio Kritski (UFRJ), Domingos Alves (USP), Guilherme Werneck (UFRJ), Mauro Sanchez (UnB), Rafael Galilez (UFRJ), Roberto Medronho (UFRJ) e Ivan Zimmermann (UnB).

São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília atuam como eixos de disseminação da infecção para outras partes do país, mostra a projeção do grupo de Alves. A momomento atual sugere que estamos à frente de uma situação de gravidade sem precedentes na história recente do país, destacam os cientistas. Em cerca de três meses desde o início da epidemia da Covid-19 na China, no final de 2019, já ocorreram mais de 400 mil casos no mundo e 18 mil mortes. É certo que esse número se multiplicará nos próximos meses. No Brasil, já foram confirmados quase 3.000 casos e 77 óbitos por Covid-19 em apenas duas semanas após a confirmação da transmissão comunitária da infecção nas cidades de São Paulo e Rio de Janeiro.

O estudo foi divulgado um dia depois de o presidente Jair Bolsonaro fazer um pronunciamento oficial recomendando o fim da quarentena decretada pelos governadores dos 27 estados e voltando a sugerir que a reação dos executivos estaduais à epidemia seria “histeria”. No dia seguinte, Bolsonaro disse a jornalistas que ordenaria ao ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, que retirasse a recomendação de distanciamento social, mantendo-a apenas para grupos de risco, como idosos acima de 60 anos. O ministro atendeu ao pedido do chefe. “Temos de melhorar esse negócio de quarentena, não ficou bom. Foi precipitado, foi desarrumado”, disse Mandetta, durante a coletiva de divulgação do número de mortos e confirmados com Covid-19 no país, na quarta-feira. “A última quarentena foi em 1917. É normal, faz parte dessa situação, nós errarmos, calibrarmos e fazermos projeções um pouco fora e questionáveis por A, B ou C. A quarentena é um remédio extremamente amargo e duro”, afirmou o ministro. Contudo, os governadores, a quem cabe editar decretos que restringem a circulação, ignoraram a recomendação e mantiveram o isolamento.

Há um temor de rápido esgotamento dos recursos nos sistemas públicos de saúde, em razão da alta demanda causada pelo alastramento da epidemia. O secretário de Saúde de São Paulo, o médico David Uip, também infectado pelo vírus, afirmou em entrevista ao jornal Folha de S.Paulo que, mais do que a falta de leitos de UTI nos hospitais públicos e privados, o mais preocupante é a escassez de materiais e da estrutura necessária para que essas unidades operem, como é o caso dos respiradores, que são fundamentais para auxiliar pacientes que sofrem da síndrome respiratória aguda grave, um dos principais sintomas do novo coronavírus. Como há uma enorme demanda mundial por esses produtos, compradores brasileiros estão tendo de competir com toda a Europa, que é, hoje, o epicentro da epidemia. A expectativa de que o vírus se espalhe de forma mais rápida que o esperado só torna mais prementes as ações para equipar hospitais e construir unidades de campanha.

­ Foto: Arte de Mateus Valadares com mapas de Getty Images e Alami
­ Foto: Arte de Mateus Valadares com mapas de Getty Images e Alami

As perspectivas pessimistas de contágio são só a ponta de um colossal iceberg. Uma pesquisa da London School of Hygiene and Tropical Medicine, na Inglaterra, estima que os casos notificados no Brasil representem aproximadamente apenas 11% do número real. Já os pesquisadores brasileiros chamam a atenção para um detalhamento mais minucioso dos casos já detectados, com atenção para o fato de Brasília, apesar de ter um número menor de casos que São Paulo até o momento, apresenta um risco de infecção maior quando se leva em consideração o tamanho da população que pode contrair a infecção, e não apenas a contagem de casos.

Considerando não apenas o número de casos confirmados da Covid-19, mas o risco inerente à população de cada cidade — fatores demográficos —, as projeções indicam que o número de infectados em Brasília poderá, nas próximas semanas, superar o registrado em São Paulo, com mais de 10 mil pessoas atingidas. Um relatório do grupo de pesquisa da EMAp/FGV em conjunto com a Fiocruz reforça o papel das cidades como eixos de dispersão. Esse trabalho identifica que a alta conectividade aérea das capitais São Paulo e Rio de Janeiro coloca essas cidades como polos de disseminação da doença para outros centros urbanos. Ele sustenta o impacto das ações imediatas de restrição da mobilidade da população dessas cidades na contenção da epidemia para outras partes do país. Ainda segundo esse estudo, os centros urbanos das regiões Sul e Sudeste, além de Recife e Salvador, têm grande probabilidade de acumular casos graves em curto prazo.

Num segundo momento, se prevê a disseminação da Covid-19 para a região litorânea entre Porto Alegre e Salvador, e microrregiões na Paraíba, no Ceará, em Pernambuco, em torno de Cuiabá, em Goiânia e em Foz do Iguaçu. As microrregiões de alto risco de epidemia a curto prazo e alta vulnerabilidade social para ações imediatas se concentram nos estados do Ceará, de Pernambuco, da Paraíba e da Bahia. Um terceiro estudo também mostra o rápido avanço da doença no Brasil. Análises preliminares realizadas por pesquisadores da Faculdade de Medicina da UFRJ e da Fiocruz na Bahia estimam que a velocidade de transmissão do vírus no estado do Rio de Janeiro será maior que a de outros países.

“UMA PESQUISA DA LONDON SCHOOL OF HYGIENE AND TROPICAL MEDICINE, NA INGLATERRA, ESTIMA QUE OS CASOS NOTIFICADOS NO BRASIL REPRESENTEM APROXIMADAMENTE APENAS 11% DO NÚMERO REAL”

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O avanço da epidemia traz um cenário dramático e um exemplo está no Distrito Federal, como apontam as projeções. De acordo com os registros oficiais do Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES), por exemplo, o estado possui 6.705 leitos hospitalares (3.959 públicos e 2.746 privados) e 1.668 leitos de cuidados intermediários e intensivos (383 públicos e 1.285 privados). Se o padrão de crescimento da propagação se mantiver, esses leitos não serão suficientes, pois cerca de 15% dos infectados precisam de internação.

As estimativas para o Brasil são consistentes com o percentual observado na Itália, conforme o Núcleo de Operações e Inteligência em Saúde (Nois). Domingos Alves explica que as projeções se baseiam nos dados disponíveis até o momento, e que, portanto, podem ser revisadas à medida que novas informações se tornem acessíveis. Em seu comunicado conjunto, os pesquisadores salientam que, para tomar as medidas mais apropriadas no combate à Covid-19, é estratégico para os gestores locais e para a população conhecer a progressão do número de casos confirmados, suspeitos, número de óbitos e de pessoas que se recuperaram, em nível municipal e estadual.

Eles destacam que “é fundamental que o governo federal mantenha o acesso de informações da Covid-19, suspenso desde 21 de março de 2020, de modo que as universidades, os institutos de pesquisa e as organizações das Forças Armadas possam auxiliar o governo federal, estadual e municipal no monitoramento da transmissão da Covid-19 e informar aos gestores e à população geral sobre as perspectivas futuras e a revisão de medidas de combate”. Frisam que “qualquer atraso na implementação das ações pode implicar em repercussões muito graves, com número crescente de óbitos e aumento substancial da dificuldade para controle da transmissão, a médio e longo prazo. Por isso, é fundamental que todos fiquem em casa. Reiteramos a importância da ciência para a manutenção da vida humana”.

Eles dizem que preocupa a decisão do governo federal de não registrar mais os casos suspeitos após a transmissão comunitária ter sido declarada em todo o país. O motivo é simples. Sem os casos suspeitos, fica muito mais difícil avaliar a progressão da epidemia e dos efeitos das ações de controle implementadas. A população não terá como saber o que de fato acontece no país, explicam os pesquisadores. O uso de plataformas que atualizem as previsões com precisão em tempo real é considerado fundamental. “Informação e transparência são cruciais para deter a Covid-19 e salvar vidas. É a medida adotada por todos os países neste momento de pandemia”, frisam os cientistas.

­ Foto: Arte de Mateus Valadares com mapas de Getty Images e Alami
­ Foto: Arte de Mateus Valadares com mapas de Getty Images e Alami

Com os pesquisadores desse grupo da USP em Ribeirão Preto, Alves desenvolveu um portal para avaliar a Covid-19 no Brasil em tempo real e fazer análises da resposta a medidas de contenção e multiplicação de casos por município. Pesquisadores desse novo grupo também já desenvolveram um mapa do risco da Covid-19 no Brasil. Uma ferramenta semelhante foi criada com sucesso na Espanha, por uma equipe liderada por Alex Arenas, da Universidade Rovira i Virgili, e Jesús Gómez-Gardeñes, da Universidade de Zaragoza. O mapa do risco estimado para o Brasil foi desenvolvido pelos brasileiros Wesley Cota e Silvio C. Ferreira, ambos da Universidade Federal de Viçosa, em Minas Gerais.

O mapa mostra o risco por município, baseado num modelo para a disseminação de epidemias com dados de mobilidade pendular (recorrente) entre municípios da população ativa no Brasil. Os dados foram compilados do Censo Demográfico do Brasil de 2010 realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

Para os cientistas, o quadro que se apresenta mostra que, num país com o tamanho continental e as desigualdades socioeconômicas do Brasil, a análise precisa ser realizada em nível municipal, de modo articulado com o nível estadual, para oferecer aos gestores e à população em geral um retrato preciso da propagação da epidemia. As análises precisam levar em consideração dados de mobilidade das pessoas, informações demográficas e socioeconômicas, capacidade instalada dos serviços de saúde, de equipamentos de proteção adequados aos profissionais de saúde, de kits diagnósticos rápidos e de leitos hospitalares e de terapia intensiva necessários a atenção ao paciente grave. “Só assim vamos obter de modo mais rápido o achatamento da curva de transmissão e menor mortalidade”, frisam os cientistas.

Eles destacam que, a despeito de alguns governadores no Brasil estarem tomando medidas mais ousadas, já deveríamos ter implantado a estratégia de contenção e supressão em vários municípios, medidas tomadas pelos países acometidos pela Covid-19. De acordo com experiências relatadas em regiões da China e Itália, a efetividade dessas medidas é maior quando iniciada precocemente, quando o número de casos suspeitos e confirmados está baixo. “Qualquer atraso na implementação das ações pode implicar em repercussões muito graves, com número crescente de óbitos e aumento substancial da dificuldade para controle da transmissão, a médio e longo prazo”, alertam os pesquisadores.