Operadora de saúde demite médico e pressiona por uso de cloroquina para Covid-19

Operadora de saúde demite médico e pressiona
por uso de cloroquina para Covid-19
Hapvida, uma das maiores no campo privado, ameaçou desligar outros profissionais; empresa
nega perseguição
28.mai.2020 às 16h52
Atualizado: 28.mai.2020 às 20h32

SALVADOR e RECIFE
João Pedro Pitombo
João Valadares
Uma das maiores operadoras de saúde privada do país, a Hapvida
Saúdedemitiu um médico e ameaçou desligar outros profissionais que não adotassem
a hidroxicloroquina no tratamento de pacientes com síndrome gripal suspeitos de
Covid-19.
A Folha ouviu quatro médicos de dois estados que relatam pressões e teve acesso a
mensagens de pelo três grupos de WhatsApp com a participação de profissionais do
grupo Hapvida.
Em um desses grupos, um chefe de plantão informa que o grupo Hapvida está
auditando os prontuários e fazendo “um ranking de médicos ofensores (os que não
prescrevem a hidroxicloroquina)”. Na mesma mensagem, ele afirma que orientação é
demitir aqueles que apareçam duas vezes no ranking.
Em outro grupo, o chefe responsável por uma unidade de saúde da Hapvida é direto e
diz que não cabe discussão sobre a hidroxicloroquina. Ele faz um alerta para que os
profissionais parem de informar os pacientes sobre o risco da medicação.
Na mesma mensagem, avalia que é necessário impedir o retorno de pacientes graves e
alega que uma empresa do tamanho da Hapvida não faria algo sem ter algum tipo de
respaldo. No entanto não apresenta provas científicas de eficácia do tratamento.
A pressão, além de configurar um possível assédio moral, também vai de encontro à
resolução do Conselho Federal de Medicina que estabelece que cabe ao médico, caso a
caso, avaliar a possível indicação da hidroxicloroquina para pacientes infectados com o
novo coronavírus.
29/05/2020 Operadora de saúde demite médico e pressiona por uso de cloroquina para Covid-19 – 28/05/2020 – Cotidiano – Folha
https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2020/05/operadora-de-saude-demite-medico-e-pressiona-por-uso-de-cloroquina-para-covid-19.shtml 2/5
Em nota, o grupo Hapvida informou que a que “a recomendação do tratamento é uma
soberania médica, que leva em conta o histórico individual de saúde de cada paciente”.
Ainda no início da pandemia no Brasil, a Hapvida estabeleceu um protocolo que
determina a prescrição de cloroquina para todos os pacientes sem comorbidades com
mais de 30 anos que apresentem sintomas por mais de quatro dias. Há também a
previsão de uso de ivermectina, um antiparasitário, e prednisona, um corticoide.
As diretrizes indicam ainda o uso do remédio em pacientes com 60 anos ou mais,
independentemente das comorbidades apresentadas.
O uso de medicamento, contudo, não é consenso estre as entidades médicas. A OMS
(Organização Mundial da Saúde) anunciou nesta segunda-feira (25) a suspensão dos
estudos com a hidroxicloroquina para reavaliar sua segurança antes de retomá-los. Na
quarta (27), retirou a droga dos estudos.
A decisão foi tomada após estudo publicado na revista científica britânica The Lancet
indicar que o uso do remédio estava ligado a maior risco de arritmia cardíaca e de
morte em comparação com pacientes que não usaram os medicamentos.
No Brasil, três entidades —Associação de Medicina Intensiva Brasileira, da Sociedade
Brasileira de Infectologia e da Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia—
recomendam a não utilização de hidroxicloroquina, cloroquina e também de suas
associações com azitromicina.
Mesmo com as indicações contrárias de entidades científicas, a Hapvida não só
manteve o protocolo de uso como passou a vender o medicamento em suas unidades
no mês de abril a preço de custo, R$ 18 o tratamento completo.
A partir de maio, o grupo adquiriu o medicamento e passou a distribuí-lo
gratuitamente em unidades de pronto atendimento, prática que não acontece com
outros remédios.
A hidroxicloroquina foi comprada por meio da Fundação Ana Lima, braço social do
grupo Hapvida, e a sua distribuição foi anunciada como “uma ação de solidariedade
para combater a Covid-19”.
Em nota à imprensa divulgada em 6 de maio, o presidente da Hapvida, Jorge Pinheiro,
defendeu a distribuição da hidroxicloroquina e afirmou que já possuía medicamento
29/05/2020 Operadora de saúde demite médico e pressiona por uso de cloroquina para Covid-19 – 28/05/2020 – Cotidiano – Folha
https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2020/05/operadora-de-saude-demite-medico-e-pressiona-por-uso-de-cloroquina-para-covid-19.shtml 3/5
para o tratamento de 20 mil pessoas. “Mas estamos trabalhando para ampliar essa
quantidade”, informou.
Ao mesmo tempo que passou a distribuir gratuitamente o medicamento, o grupo
Hapvida, segundo relatos de médicos de Pernambuco e Ceará, passou a pressionar os
profissionais a prescrevê-lo em reuniões presenciais e também nos aplicativos de
mensagens. Com medo de represálias, os médicos que conversaram om a reportagem
pediram anonimato.
Um deles, que atuava em uma das unidades do grupo no Ceará, foi desligado do
quadro de médicos plantonistas do Hapvida no dia 19 de maio.
Ele afirma que nove dias antes foi procurado pessoalmente por um coordenador
médico em seu consultório, que indagou o porquê de não estar prescrevendo o
medicamento para os pacientes suspeitos de Covid-19.
Em resposta, ele citou estudos científicos que apontam a ineficácia e os riscos do uso
do medicamento. Manteve a sua posição de não receitar a hidroxicloroquina para
casos leves e acabou sendo desligado do quadro de plantonistas na semana seguinte.
Um médico que atua no grupo Hapvida em Pernambuco informou que, mesmo contra
sua vontade e entendimento profissional, tem prescrito o chamado kit Covid-19 para
doentes atendidos muitas vezes com quadro gripal bastante leve.
Ele informou que, em um plantão de 12 horas, chega a receitar de maneira obrigatória
a cloroquina para mais de dez pacientes. O profissional destacou ainda que os médicos
que só prescrevem o remédio em casos mais graves estão sendo repreendidos pelas
chefias imediatas.
Uma médica com poucos anos de experiência, que trabalha em um dos hospitais da
Hapvida em Pernambuco, disse que se sente culpada em ter que prescrever a
hidroxicloroquina contra os seus princípios profissionais. Ela alega que não tem saída
porque precisa do emprego para pagar suas contas.
Na avaliação dos médicos ouvidos pela Folha, não há sentido em fazer uso da
hidroxicloroquina indiscriminadamente, sobretudo nos casos pacientes com sintomas
leves que não estão internados em uma unidade hospitalar.
29/05/2020 Operadora de saúde demite médico e pressiona por uso de cloroquina para Covid-19 – 28/05/2020 – Cotidiano – Folha
https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2020/05/operadora-de-saude-demite-medico-e-pressiona-por-uso-de-cloroquina-para-covid-19.shtml 4/5
Nestes casos, os riscos seriam ainda maiores, já que não há possibilidade de
monitoramento periódico por meio de eletrocardiograma, nem de intervenção rápida
dos médicos em caso de efeitos colaterais como arritmias cardíacas.
O Cremepe (Conselho Regional de Medicina de Pernambuco) recebeu denúncia dos
médicos sobre as ameaças relatadas e vai abrir sindicância para apurar o caso.
O vice-presidente do órgão, Maurício Matos, disse que os médicos não podem ser
obrigados a prescrever qualquer tipo de medicamento.
“Não há obrigação a seguir. Quem tem autonomia plena para decidir é o médico.
Principalmente com uma droga que não tem comprovação de efeitos em nenhum
estudo de qualidade no mundo. Até agora, as pesquisas apontam que não há benefício
e pode, inclusive, causar prejuízo para pacientes”, disse.
Matos informa que o médico não pode sofrer qualquer tipo de pressão para tratar o
paciente com algo que ele não concorde.
Sugere que aqueles profissionais que temam sofrer represálias denunciem o problema
a suas entidades de classe. “Os sindicatos podem nos encaminhar essas denúncias e os
médicos são preservados”, diz.
Em resposta à Folha, a Hapvida informou que segue rigorosamente as diretrizes da
Abramge (Associação Brasileira de Medicina de Planos de Saúde) no que diz respeito
ao enfrentamento da Covid-19.
A empresa comunicou que vem acompanhando as iniciativas lideradas pelo Ministério
da Saúde para minimizar os impactos da doença.
O grupo destacou que o uso do remédio, segundo observações clínicas, tem
demonstrado resultados positivos, principalmente quando ministrado nos primeiros
dias de sintomas.
PUBLICIDADE
Promote health. Save lives. Serve the vulnerable. Visit who.int
29/05/2020 Operadora de saúde demite médico e pressiona por uso de cloroquina para Covid-19 – 28/05/2020 – Cotidiano – Folha
https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2020/05/operadora-de-saude-demite-medico-e-pressiona-por-uso-de-cloroquina-para-covid-19.shtml 5/5
Em uma nova nota enviada após a publicação desta reportagem, a Hapvida informou
que sempre respeitou a soberania médica: “O profissional médico é sempre a
autoridade máxima, quando o principal compromisso é salvar vidas”.
Segundo a empresa, 55% dos pacientes com suspeita de Covid-19 receberam a
hidroxicloroquina por prescrição médica e dando seu consentimento. Outros 45% não
receberam porque não houve prescrição médica.
“Não há perseguição aos profissionais que não quiseram fazer uso da medicação.
Nosso corpo médico das emergências e urgências é formado por 2.000 médicos. Se
houve alguma demissão, seguramente, esse não foi e nem será o fator decisório”,
informou o grupo.
Sobre a doação gratuita da hidroxicloroquina aos pacientes, a empresa disse ser esta
“uma forma de afiançar o acesso ao tratamento, visto que a medicação não é mais
encontrada à venda nas farmácias das cidades

Comentários
você pode gostar também