Os brasileiros na linha de frente da corrida pela vacina contra a Covid-19 É possível que até o fim do ano desponte algum imunizante eficaz

Os brasileiros na linha de frente da corrida pela vacina contra a Covid-19
É possível que até o fim do ano desponte algum imunizante eficaz — mais de 14 mil voluntários fazem parte dessa fascinante
movimentação científica
Por Giulia Vidale, Sofia Cerqueira – Atualizado em 10 Jul 2020, 19h26 – Publicado em 10 Jul 2020, 06h00
Um tema, não o único, mas primordial, tem ocupado o tempo de uma série de encontros remotos, por meio de
videoconferência entre campeões da filantropia e do capitalismo mundial: a busca de uma vacina contra o novo
coronavírus. Há cerca de dois meses, o fundador da Microsoft, Bill Gates, o megainvestidor Warren Buffett e o empresário
brasileiro Jorge Paulo Lemann trocavam impressões sobre a pandemia e, num momento em que o mundo estava
extremamente abalado pelo surto, demonstravam algum otimismo. Lemann estava particularmente animado porque havia
sido procurado pelos diretores da Universidade de Oxford, na Inglaterra, para ajudar na busca por um imunizante. Um
pedaço relevante da pesquisa, realizada em parceria com a farmacêutica britânica AstraZeneca, poderia ser feito no Brasil.
Disse sim no mesmíssimo dia, e se comprometeu a bancar os custos de aplicação da substância experimental em 2 000
voluntários paulistas — 1 000 deles de modo direto e a outra metade com a assistência de um par de apoiadores, a Fundação
Brava e a Fundação Telles. Nascia ali uma das maiores apostas da humanidade na luta contra o novo coronavírus. “Estamos
esperançosos, animados, e tentando ajudar os profissionais que mais entendem do assunto no mundo”, disse Lemann a
VEJA. Por força de atávica discrição, ele não confirma, mas sabe-se que, ao anúncio de uma vacina, estaria disposto a
desembolsar algo em torno de 30 milhões de reais para apoiar algum fabricante de modo a incentivar rápida produção por
aqui.
MADE IN BRAZIL – Laboratório da Fiocruz, no Rio: exemplo mundial de sucesso com imunização. Bernardo Portella/Bio-Manguinhos/Divulgação
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Nunca antes, como agora, gastou-se tanto (estima-se que o valor global chegue a mais de 20 bilhões de dólares) com a
procura de uma vacina que proteja o mundo do Sars-CoV-2, o vetor da Covid-19. Afinal, até a quinta-feira 9, o vírus já
atingiu em números oficiais mais de 12 milhões de pessoas, com cerca de 550 000 mortes — quase 70 000 no Brasil. Na
corrida para interromper uma tragédia ainda maior, existem hoje em todo o planeta em torno de 160 projetos de
imunizantes. Destes, 21 já estão em fase de testes clínicos em humanos — e dois chegaram à derradeira etapa exigida pelas
agências regulatórias para aprovação. Ambos estão no Brasil: o de Oxford e o da chinesa Sinovac Biotech, que também
desembarcou para testagem, por meio do Instituto Butantan, de São Paulo, ancorado pelo governo do estado (acompanhe a
corrida pela vacina no quadro da pág. 62). Especialistas ouvidos por VEJA acreditam que, com a aceleração de etapas,
uma vacina possa ser posta em circulação ainda entre novembro e dezembro deste ano. A gigante Pfizer, por exemplo, já
começou a fabricá-la, mesmo sem certezas, em procedimento raro, mas justificável, de modo a ganhar tempo.
Evidentemente, só a distribuirá depois de confirmações absolutas, com total segurança. Trata-se de uma corrida em que o
vencedor (tomara que assim seja) ganhará em tempo recorde. No caso do sarampo, por exemplo, passaram-se quatro anos
entre a eclosão da doença e a proteção química.
A PIONEIRA DO ESTUDO DE OXFORD
Denise Caluta Abranches Egberto Nogueira/Ímãfotogaleria/VEJA
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A cirurgiã-dentista Denise Caluta Abranches, de 47 anos, coordenadora de odontologia do Hospital São Paulo, foi a
voluntária número 1 do país. ”É minha forma de contribuir como profissional da saúde e colaborar com outras pessoas
que, como eu, estão trancadas em seus lares e afastadas de amigos e familiares esperando uma proteção”, diz. “Minha
mãe era enfermeira e a disposição para ajudar os outros sempre foi muito forte em casa.”
A participação brasileira nesta busca pelo santo graal é mundialmente relevante, e precisa ser celebrada. O país foi
procurado em virtude da explosão de casos, e não há como negar essa constatação (testam-se vacinas onde elas são
necessárias), mas também como resultado de um histórico de reputação internacional na área. O programa de vacinação
brasileiro, apesar de recentes recuos durante a Presidência de Jair Bolsonaro, é invejável. Diz a pesquisadora brasileira Sue
Ann Costa Clemens, diretora do Instituto de Saúde Global da Universidade de Siena, a interlocutora inaugural entre Oxford
e Lemann: “No início de maio, muitos outros países tinham curva ascendente como a do Brasil. O país foi escolhido pela
excelente estrutura dos centros de pesquisa, capacidade dos pesquisadores e por ter conseguido, em pouquíssimo tempo,
grande quantidade de voluntários”. Foram dois dias para encontrar instituições aptas, uma semana para a confirmação de
patrocinadores e apenas 44 dias entre o primeiro contato e o início dos trabalhos. “Estou no comitê científico de outras duas
vacinas e não vi essa agilidade em lugar algum”, diz Sue, coordenadora do estudo no Brasil.
SENSAÇÃO DE DEVER CUMPRIDO
Entre os primeiros a receber a vacina de Oxford no Rio, em 3 de julho, o carioca Afonso Senos, de 30 anos, estudante de
medicina e estagiário de um centro de triagem para Covid-19 na UFRJ, foi um dos poucos nos plantões a não contrair o
novo coronavírus. “Não me sinto um super-herói, mas um cidadão cumprindo seu dever. Sou saudável, quero dedicar a
minha vida a ajudar as pessoas como médico, e não poderia me abster diante da pandemia”, diz.
Louve-se, em particular, a estrutura da Fiocruz, no Rio de Janeiro, que anualmente tira da linha de montagem 120 milhões
de doses de imunobiológicos contra febre amarela, pólio, sarampo, caxumba e rubéola, entre outros. A Fiocruz está se
preparando para, dado o sinal verde tão esperado, produzir mensalmente até 40 milhões de doses contra a Covid-19. Isso
significa que em pouquíssimo tempo, pouco mais de cinco meses após a comprovação da eficácia da vacina, toda a
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Afonso Senos Ricardo Borges/VEJA
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população brasileira estará imunizada. Para isso, a instituição receberá investimento do Ministério da Saúde, comprará
biorreatores de última geração e aperfeiçoará sistemas de purificação e filtragem, além de ter direito a ampla transferência
de tecnologia importada do Reino Unido. “Ainda que a vacina não demonstre ser 100% efetiva, o que é uma possibilidade,
teremos extraordinários ganhos de conhecimento que nos permitirá fortalecer nossa capacidade de produzir outras
substâncias”, diz a pesquisadora Nísia Trindade, presidente da Fiocruz.
COBAIA SEM MEDO
Fazendo sua iniciação científica em um laboratório de neurociência, Thayana Torquato, 24 anos, estudante de
biomedicina, venceu calmamente o receio inicial da família e se apresentou como voluntária para o grupo de investigação
liderado pela Universidade de Oxford, no Rio de Janeiro. Seus conhecimentos convenceram sobejamente os familiares da
dignidade do gesto. “Sinto-me plenamente segura em ser cobaia na fase 3, quando já ocorreram outros testes e os riscos
são menores. Como alguém que atua no setor, sei da importância de haver muitos voluntários para confirmar a eficácia de
uma fórmula”, afirma.
Tudo somado, com os dois procedimentos mais relevantes do planeta, haverá cerca de 14 000 voluntários brasileiros entre
18 e 55 anos nos testes da vacina — 1 000 deles coordenados pelo Instituto D’Or de Pesquisa e Ensino e financiados pela
Rede D’Or, no Rio de Janeiro. Em todo o mundo, apenas no pacote de Oxford, serão 50 000 doses distribuídas entre Brasil,
Estados Unidos e África do Sul, além do Reino Unido. As inscrições são abertas apenas a pessoas altamente expostas ao
vírus, em especial profissionais da área de saúde e afins, como motoristas de ambulância e agentes de limpeza em hospitais
que ainda não foram infectados. O estudo é do tipo “simples-cego randomizado”. Ou seja, as pessoas são sorteadas
aleatoriamente e podem cair em dois grupos distintos: o da vacina propriamente dita (ChAdOx1 nCoV-19, a sigla que pode
fazer história) e o de “controle”, no caso um imunizante para meningite (MenACWY), sem que saibam em qual estão.
Thayana Torquarto Ricardo Borges/VEJA
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Há, nessa turma de heróis, embora eles rejeitem a alcunha, um misto de coragem e altruísmo — com controle,
evidentemente, daí a seleção de pessoas com boa saúde e fora das faixas etárias que representem risco (leia os depoimentos
ao longo desta reportagem). Mais de 1  100 homens e mulheres já passaram por triagens no Brasil, e 667 receberam a
agulhada. No termo de consentimento entregue aos profissionais de Oxford e da AstraZeneca, o cidadão lê alguns alertas
que só não soam assustadores por ser capítulos protocolares e impositivos. Num dos trechos está escrito: “há o risco de
eventos adversos graves, como reações alérgicas, reações no sistema nervoso e possibilidade de um efeito inesperado”. Para
participar dos estudos clínicos, o candidato não pode ter nenhuma comorbidade, como hipertensão, doença gastrointestinal,
renal ou respiratória, e, no caso de mulheres, dispostas a manter o uso de contraceptivos durante pelo menos um ano.
Depois da entrevista de triagem, feita diante de uma bancada de médicos, o voluntário é encaminhado para a realização de
um teste sorológico e um de PCR — o primeiro verifica se há anticorpos no organismo para o vírus, indicando
contaminação anterior, e o segundo atesta infecção naquele momento, o que inviabilizaria a participação. Com resultados
negativos, dá-se a convocação em três ou quatro dias para a aplicação da vacina no músculo deltoide do braço. Feita a
picada, são entregues um termômetro e uma pequena régua. Nos 28 dias subsequentes, será preciso medir a temperatura e
eventuais reações cutâneas (daí a régua). Os sintomas esperados são semelhantes aos da gripe, com dores musculares,
incômodo nas articulações, febre e náusea. No período de um ano, haverá outras três visitas aos coordenadores do estudo.
ÁFRICA DO SUL - Aplicação de vacina experimental desenvolvida pela Oxford e pela AstraZeneca em Johannesburgo: iniciativa global e cada vez mais acelerada. Felix
Dlangamandla/Getty Images
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UNIDOS PELA IMUNIZAÇÃO
Nos últimos meses, a obstetra Renata Magalhães, de 40 anos, viu pelo menos três grávidas não resistir à Covid-19. O
marido, Marcello Magalhães, 44 anos, anestesista, calcula que 70% dos colegas de equipe tenham contraído a doença.
Ciente dos perigos do novo vírus, o casal, que trabalha num hospital municipal do Rio de Janeiro e atua na rede privada,
decidiu se voluntariar. “Tenho contato com muitas doenças, o risco já faz parte da minha rotina”, afirma ela. “Com a
pandemia, as pessoas viram o que é o mundo sem uma vacina”, ecoa ele. “Está mais do que provado como elas são
fundamentais para que possamos viver com alguma tranquilidade.”
Até que se chegue a algum veredicto confiável, é natural que paire no ar, de modo quase palpável, uma nuvem de ansiedade
traduzida em uma questão central: com tantas candidatas em desenvolvimento, como saberemos quando uma vacina é boa e
firme o suficiente para ser aprovada e utilizada na população em geral? O ideal seria alcançar a eficácia contra a febre
amarela (de 99%) ou contra o sarampo (96%). Entretanto, uma vacina com índice de sucesso mais baixo não é
necessariamente ruim, principalmente diante de uma pandemia. Segundo a OMS, uma vacina que consiga proteger pelo
menos 70% da população, incluindo idosos, já seria um grande sucesso. Segundo especialistas, no pior dos cenários, um
imunizante que não previna a infecção, mas evite casos graves, como é o caso da vacina contra a tuberculose, já
representaria um grande avanço no combate à Covid-19 e um passo em direção à volta à normalidade. Diz o embaixador
britânico no Brasil, Vijay Rangarajan, de mãos dadas com a Oxford e o braço tropical: “A única maneira de ajudar nossos
povos a sair dessa crise o mais rápido possível é desenvolver, testar, financiar, produzir e distribuir uma vacina, tudo ao
mesmo tempo. Isso não é normal e tem um risco enorme, mas é preciso arriscar”.
Renata Magalhães e Marcello Magalhães Ricardo Borges/

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As ponderações feitas por pessoas próximas aos projetos não devem ser desprezadas. Existe, sim uma possibilidade de que
nenhum imunizante seja eficiente contra o novo coronavírus em pouco tempo — nem os que estão sendo estudados por
aqui nem os de fora. É provável, aliás, que a maior parte deles não dê certo. “Imagino que meia dúzia das vacinas
trabalhadas possa dar certo, embora não possamos descartar o fracasso”, alerta a microbiologista Nathalia Pasternak,
presidente do Instituto Questão de Ciência. E então será preciso um pouco mais de tempo e paciência para vencermos esse
desafio. “Em um primeiro momento, é possível que tenhamos apenas um paliativo”, diz Carlos Murillo, CEO da Pfizer no
Brasil. Mas qualquer avanço que se faça pode significar mais vidas poupadas, o que já valeria toda a energia e
investimentos nessa busca. E, insista-se, essas são de fato boas apostas, com excepcionais chances de sucesso.
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INSATISFAÇÃO - A Revolta da Vacina, de 1904, no Rio: o povo foi às ruas incomodado a rigor com a remoção de casas durante uma campanha de limpeza. Biblioteca
Nacional/Arquivo
Vacina contra a Covid-19: falta pouco
Leia nesta edição: os voluntários brasileiros na linha de frente da corrida pelo imunizante e o discurso
negacionista de Bolsonaro após a contaminação
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Eis aí a beleza da ciência, em movimentos de sístoles e diástoles, sem a qual a civilização não existiria. E as vacinas, na
construção da inteligência humana, no embate contra as doenças, são personagem indissociável do progresso, apesar da
insistente pressão de grupos avessos à sensatez. No início do século XIX, quando a pioneira vacina contra a varíola criada
por Edward Jenner (1749-1823) começou a ser aplicada em grande número, houve imensa grita. A ideia de injetar uma
preparação biológica em humanos para criar imunidade “artificial” despertou objeções sanitárias, políticas e até religiosas.
Cem anos depois, em 1904, o Brasil se viu em meio ao movimento conhecido como a Revolta da Vacina, em que a
população foi às ruas na então capital, o Rio de Janeiro, protestar contra a obrigatoriedade da vacinação que visava a
erradicar, entre outros males, a febre amarela. Hoje, há a tolice do movimento antivacina, ancorado em argumentos
religiosos e em um suposto direito individual que se sobreporia ao coletivo — e males como o sarampo, que pareciam
vencidos, cresceram 300% no mundo só nos primeiros meses de 2019. A ignorância, assim como o Sars-CoV-2, é de
complicada erradicação. Mas nenhum desafio é intransponível para a poderosa combinação de ciência, trabalho sério e
inteligência.
Colaborou Felipe Mende

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