Um “habeas corpus” sob encomenda: o paciente era João de Deus

Um “habeas corpus” sob encomenda: o paciente era João de Deus

Liberato Póvoa

O caso João de Deus tornou-se notícia nacional e internacional, visto que o “médium” de Abadiânia goza de fama como poucos, sendo conhecido internacionalmente mercê de suas curas espirituais, que arrebanham, há mais de quarenta anos, personalidades do mundo inteiro cuja citação é despicienda.

Preso em decorrência de preventiva decretada pelo juiz de Abadiânia Fernando Augusto Chacha de Rezende, João de Deus apresentou-se e foi recolhido ao Complexo Prisional de Aparecida de Goiânia em 16 de dezembro último.

A defesa, de imediato, impetrou “habeas corpus” junto à Corte de Justiça goiana, cuja liminar foi negada pelo desembargador Jairo Ferreira Júnior. Houve recurso contra o indeferimento do remédio heroico para o STJ, e o ministro Nefi Cordeiro, no dia 19 seguinte, negou o pedido de liberdade.

Posteriormente, a juíza de Abadiânia decretou nova preventiva em razão de haverem sido encontradas várias armas em imóveis de João de Deus, mas desta vez o Tribunal goiano, por decisão do juiz Wilson Safatle Faiad, substituto em Segundo Grau, concedeu-lhe a liberdade, mediante a  substituição da prisão preventiva por prisão domiciliar, com uso de tornozeleira eletrônica e o pagamento da fiança de um milhão de reais.

A incansável defesa do líder espiritual, de imediato, recorreu ao STF, já no recesso de fim de ano, e o plantonista, ministro Dias Toffoli, diante das argumentações da idade avançada (77 anos) e da saúde fragilizada do paciente, com histórico de cardiopatia, mandou pedir informações à juíza de Abadiânia sobre a necessidade de internar João de Deus em um hospital. Em 04/01/2019, a juíza Marli de Fátima Naves afirmou que “não há, até presente data” indícios de que o “médium” João de Deus precise ser transferido para receber atendimento de um especialista em cardiologia.

Amigo pessoal de João Teixeira da Faria, o João de Deus, há cerca de 30 anos, como já afirmado em artigo anterior (“Uma reflexão sobre o caso João de Deus sob a ótica da Justiça e da Espiritualidade”, DM de 26/12/2018), e por deferência de um de seus advogados, fui visitá-lo no dia 11  de janeiro transato no Núcleo de Custódia de Aparecida de Goiânia, inclusive para tirar a limpo, para conhecimento próprio, a informação da juíza de que o paciente não precisava de ser internado.

Espantei-me com seu deplorável estado físico: encontrei um esquálido João de Deus, que aparentava desnutrição em alto grau; pálido, depauperado, magro, macilento, não pelo tratamento que vem recebendo, pois observei que o Dr. Bruno Pereira Morais, Diretor daquele Núcleo de Custódia, bem como os carcereiros, estão dispensando a ele um tratamento digno e humano, mas não podem fazer milagres, posto que aquela unidade não tem as mínimas condições estruturais para cuidar adequadamente de um homem daquela idade e com graves problemas de saúde; inclusive, tivemos que sair para buscar medicamento receitado para estancar uma disenteria que lhe acometera logo pela manhã.

No dia anterior, 10 de janeiro, a Primeira Câmara Criminal do TJ-GO levou em mesa o HC impetrado, com a presença de seu “quórum” completo: os desembargadores Nicomedes Domingos Borges (relator), Itaney Francisco Campos, Ivo Fávaro, José Paganucci Jr (Presidente). e o juiz Sival Guerra Pires, substituto do 2º. Grau.

O julgamento do HC foi suspenso, após o pedido de vista do juiz Sival Guerra Pires que requereu  mais tempo para analisar o caso.

O Ministério Público emitira um parecer contrário ao HC. O relator do processo, desembargador Nicomedes Domingos Borges, acompanhou a posição do órgão e votou contra a liberdade do ”médium”. Os outros três desembargadores seguiram a mesma posição do relator.

Porém, o último a votar, o juiz Sival Guerra Pires, por justificada prudência, e talvez estranhando os argumentos do relator, pediu vista do processo para que ele tivesse mais tempo para analisar o caso. Com isso, o julgamento fica suspenso por tempo indeterminado.

O advogado de defesa, Alberto Toron, disse que sustentou dois argumentos para pedir a medida, justificando: “Primeiro, os fundamentos da prisão não a justificam. Não houve ameaça a vítimas, até porque elas não foram identificadas. E, em segundo lugar, não houve movimentação financeira das contas”. Além disso, reforça que existem outras alternativas ao encarceramento, como a prisão domiciliar, requerida na oportunidade.

O decreto de prisão diz respeito à garantia da instrução e aplicação da lei penal, sob os fundamentos de que pessoas de Abadiânia, sem especificar nomes, teriam dito a uma das vítimas que quem afrontava João de Deus ele mandaria matar, mas não declinou nenhum nome, e ele nunca ameaçou a testemunha. Segundo ponto, Coaf teria informado que João de Deus teria tentado sacar 35 milhões, mas o dinheiro nunca foi sacado nem foi transferido, encontrando se no mesmo banco aplicado. Esse fato foi interpretado como “possível tentativa de fuga” fato que nunca ocorreu. João de Deus apresentou-se espontaneamente à Polícia Civil de Goiás, conforme documento emitido pela própria Polícia Civil. Em suma, no Código de Processo Penal de quem decretou a preventiva faltava o artigo 312.

No julgamento do HC aconteceu um fato inusitado: uma promotora que está fazendo investigação, Dra. Gabriela de Queiroz Clementino, fez sustentação oral pedindo o indeferimento da ordem.

Em seguida, na sustentação oral da defesa, Alberto Toron, rebateu todos os pontos e demonstrou que os fundamentos do decreto de prisão não se sustentavam: primeiro que João de Deus nunca ameaçou a suposta vítima ou testemunha; que documentalmente restou provado que o dinheiro nunca foi sacado nem se tentou transferi-lo, e mais atualmente seus bens encontram-se bloqueados, fatos suficientes para fulminar o decreto de prisão.

A defesa pediu, então, que se não o soltassem, que se lhe concedesse, em razão dos 77 anos de idade, quadro clínico grave, seis “stents” no coração, operado de câncer no estômago, quando retirou sessenta por cento do órgão, fosse utilizado o que prevê a lei processual penal medida cautelar diversa da prisão celular: prisão domiciliar, tornozeleira eletrônica e proibição de comunicar-se com testemunhas etc.

Trazendo uma esquisita inovação processual, o relator, desembargador Nicomedes Domingos Borges, disse que tinha uma informação “extra autos” de que o João de Deus tinha sido operado de um câncer e agora estava curado!

Julgou com fatos “extra autos”, mas, esqueceu-se de que “quod non est in actis non est in mundo” (“o que não está nos autos não está no mundo”), velho brocardo que vem do Direito Romano e que é adotado nos Judiciários  sérios de Estados democráticos. Desprezou todas as robustas provas carreadas ao processo, inclusive laudos médicos, omitiu isto aos pares que o seguiram, preferindo irmanar-se à mídia que parece ter encontrado o desejável “bode expiatório” – João de Deus.

O relator só não mencionou que o paciente está há dias à espera de exames urgentes, como endoscopia e ultrassonografia, que ainda não foram realizados porque a juíza de Abadiânia vem fazendo exigências descabidas, parecendo até que deseja que João de Deus sucumba na prisão, porque assim será um processo a menos para ser julgado.  

Minha sugestão é que encontrem uma forma de mandar os membros desta Câmara Criminal para Brasília, pois certamente serão muito bem agasalhados no STJ ou no STF, que não julgam de acordo com a lei, mas com as conveniências da hora.

(Publicado no “Diário da Manhã” de 15/01/2019)

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