Zuza Morredeira, que dava sapituca durante o jogo, mas não parava a partida

Zuza Morredeira, que dava sapituca

durante o jogo, mas não parava a partida

 

Liberato Póvoa

 

Nesta minha escrevinhança, publicando no Facebook, acabo é trazendo leitores que não vejo há meio século, e meu primo segundo Dorival Fernandes, que eu mais Diógenes tratávamos de “Domba”, cobrou-me num comentário: Gostaria que escrevesse algo acerca do “Morredeira”, aquele jogador de futebol que costumava ter pequenos desmaios em campo, interrompendo o jogo constantemente, mas assim que melhorava continuava na disputa. Lembra-se?”

Cidadezinha escassa de gente, não havia meio de se formar a não ser dois times lá no Duro: de um lado, o time do Ginásio, orientado pelo Dr. Magalhães, e do outro, o da Cidade, dirigido pelo meu primo Zito, que nunca jogara bola. O do Ginásio era praticamente formado de meninotes: Tezinho, Jeovah, Baúcho, Ney, Zé Afonso, Juarez Bruaca, Diógenes, Milton de Culeu e outros franzinos rapazolas. O da Cidade era de homens feitos: Zuza Morredeira, Hercy, Nezinho Pantame, Dário de Brasilina, Tico de Maria Viúva, Leônidas Peidorreira, Petinha e Generino da velha Dionila, e outros respeitáveis pais de família, mais afeitos à colher de pedreiro e ao careco de massa de cal e cimento do que propriamente à bola.  Mas enganavam muito bem.

Havia gente que levava jeito – como Tico, de Maria Viúva – que, se fosse hoje, estaria tranquilamente envergando a camiseta de um time grande num estádio qualquer, sem fazer vergonha.  Esse terrível Tico parece que nascera com o futebol na massa do sangue, pois era tão bom no gol como na ponta-esquerda, passando por todas as posições.

A fragilidade da meninada do fanático flamenguista Dr. Magalhães não o animava a colocá-la frente a frente com os taludos atletas do time da Cidade: onde é que uns frangotes daqueles iam dar vencimento ao muque daqueles pedreiros e serventes de obra, sem se falar noutros fornidos braçais?  Home quá!

Dr. Magalhães ia treinando sua turminha para um dia – quando sentisse que ela estivesse preparada pelo menos psicologicamente – enfrentar a turma de Zito.  Mas foi levando com paciência, pois a meninada estava numa cegueira danada para se exibir e queria porque queria medir forças com os experimentados varapaus citadinos.

Foi nada, não. Vão assuntando.

Um dia, Dr. Magalhães viajou para Arraias, e na sua ausência a turminha deu uma de desobediente e ajuntou-se num fim de semana, desafiou a sisuda equipe de Zito, que estava seca pra responder no campo às provocações da gurizada.

No dia do jogo clandestino, uma verdadeira multidão disputou as margens do campinho ali no pé de tamarindo, em frente ao goiabal que servia de “cagador”.  E a gurizada, toda descalça, deu um “banho” nos velhos, fazendo por sua própria conta um batismo de fogo sempre adiado pelo Dr. Magalhães, que só não deu uma sapituca porque seus pupilos haviam aplicado homérica e histórica goleada, que serviu para marcar os futuros prélios como disputadíssimos clássicos, sempre com gosto de revanche.

Mas a experiência da turminha serviu para afamar o time, que saiu “catando” tudo quanto era seleção: de Taguatinga, Natividade, Porto Nacional e outras cidades. E o entusiasmo embriagou Dr. Magalhães de tal forma, que nosso timinho, resolveu ir até Barreiras, na Bahia, cutucar com vara curta o temível Coríntians de Zé de Hermes, Valmir Cabeça Branca, Erondino e Zé Domingos, e que jogava pau-a-pau com times até da capital.

Partiu a caravana para Barreiras.  Dias depois, a turma voltou: tinha levado uma respeitável goleada de 6 a 1, que deixou Dr. Magalhães apaixonado de desgosto, sem fazer a barba por seis meses, inconformado com a derrota. Milton de Culeu foi quem marcou o chorado gol de honra.

Mas sempre há uma coisa que ressalta de qualquer narrativa: a turma de Zito era formada quase toda de pedreiros, à exceção talvez de Hercy, irmão de Milton e Goyaz, e morava quase todo mundo na rua que descamba do fim da Rua dos Rodrigues (já chegando aos Nove) e morre nas confrontâncias do Ginásio João d´Abreu. Não tinha banco de reservas, e na falta de quadro para inteirar o plantel, quem jogava no gol era Zuza, filho da velha Arcanja, vizinha e aparentada de Brasilina e Miligido, fazendeira de maduro e gengibirra pra vender na rua e nas festas dos arredores.

Mas Zuza tinha um achaque, uma doença que de vez em quando levava o pobre pedreiro a dar uma sapituca, tipo desmaio, não escolhendo hora e lugar. E como não tinha reserva para substituí-lo, fiquei canso de ver Zuza dar aquele chilique que tremia o corpo e caía debaixo da trave, no feitio de galinha com o pescoço cortado. E o jogo parava até Zuza se recompor, para prosseguir logo que suas vistas clareassem e as pernas ganhassem prumo.

E como a gente só fica caçando só um pé pra tacar apelido nos outros, o pobre filho da velha Arcanja passou a ser conhecido por Zuza Morredeira, que colou nele como goma de tapioca na parede.

Mas nós, que vivemos aquela época, guardamos numa gaveta especial do escaninho da memória aqueles joguinhos ao pé do tamarindeiro.

 

(Publicada no “Diário da Manhã” de 12/02/2019)

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