Um castigo limitado que não mudou o equilíbrio da guerra na Síria


Um castigo limitado que não mudou o equilíbrio da guerra na Síria

Ataque aliado visou locais de produção e armazenamento de armas químicas e poupou forças russas na Síria. A retaliação que se espera de Moscovo não é militar, e o risco de escalada é reduzido.
MARIA JOÃO GUIMARÃES 14 de Abril de 2018, 21:56
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FotoUm centro de investigação foi um dos três alvos do ataque da madrugada de sábado OMAR SANADIKI/REUTERS
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Um ataque cauteloso e preciso que não espelhou a dureza da guerra de palavras dos últimos dias. Os aliados – Estados Unidos, Reino Unido e França – atingiram pelas 4h da manhã em Damasco três locais ligados ao programa de armas químicas do regime de Bashar al-Assad, mas o ataque não afectou a sua capacidade militar convencional e não mudou o equilíbrio de forças na guerra. Também não caiu no maior risco, que era um confronto directo com a Rússia, no terreno a apoiar Assad. Moscovo deixou, aliás, as defesas anti-aéreas sírias lidar com os mísseis sem intervir.

A operação foi apresentada pelo secretário da defesa dos EUA, Jim Mattis, como uma acção isolada, permitindo a Donald Trump congratular-se no Twitter: “missão cumprida!”

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O Pentágono deu, numa conferência de imprensa, detalhes sobre a acção, com o disparo de 105 mísseis de vários tipos contra três locais ligados ao programa de armas químicas de Bashar al-Assad. Um ataque “preciso, esmagador e eficaz”.

Com esta acção, disse o Departamento de Defesa norte-americano, foram atingidos locais centrais para o programa de armas químicas de Assad, o que o atrasará “alguns anos”. Mas o programa não foi destruído. A embaixadora norte-americana na ONU, Nikki Haley, afirmou que os EUA estão “prontos a disparar” caso o regime de Assad volte a usar armas químicas.

Os aliados apressaram-se a sublinhar tudo isto. A primeira-ministra britânica, Theresa May, foi muito clara, numa declaração: “Não se trata de intervir na guerra civil [síria]. Não se trata de provocar uma mudança de regime. Tratou-se de um ataque limitado, e direccionado, [realizado de forma] a que não faça escalar a tensão na região e com todos os cuidados para evitar baixas civis”.
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A Rússia pediu uma reunião de urgência no Conselho de Segurança, em Nova Iorque, apresentando uma resolução contra “a agressão” dos três países a um país “soberano”, uma acção “ilegal” e contrária “à Carta das Nações Unidas”.

No debate, a embaixadora do Reino Unido, Karen Pierce, lembrou que se existem armas químicas, ilegais, na Síria é porque Moscovo, que se comprometeu a um papel de verificação num acordo de 2013, não cumpriu este papel. “Não recebo lições sobre direito internacional da Rússia.”

Também o embaixador francês na ONU, François Delattre, disse que “a Carta da ONU não foi feita para proteger criminosos”.

A resolução russa tinha chumbo certo, mas observadores da ONU notam que raras vezes a Rússia calculou tão mal, porque acabou muito isolada: dos 15 membros do Conselho de Segurança, apenas outros dois, a China e a Bolívia, votaram a favor da sua proposta. Quatro abstiveram-se (Etiópia, Cazaquistão, Peru e Guiné Equatorial) e oito votaram contra.

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Aliás, vários países reagiram favoravelmente ao ataque, da Alemanha à Turquia, de Israel ao Canadá, sublinhando que o preço de não agir era haver mais ataques químicos como o de sábado, em que terão morrido mais de 70 pessoas em Douma, nos arredores de Damasco, e em que se suspeita do uso de dois gases, cloro e sarin.

O jornalista da BBC Jeremy Bowen classificou este ataque como um “castigo limitado”: “Tanto a Rússia como o Ocidente são mais prudentes do que a retórica sugere. Não foram atacados alvos do regime. Não foram atingidos russos nem iranianos. Os russos não usaram o seu sistema de defesa aérea. Ambos os lados estão a evitar uma escalada”.

A Rússia explicou que não agiu porque os mísseis “não entraram na sua zona de responsabilidade”, mas acrescentou que o sistema sírio interceptou 71 dos 103 mísseis. O Pentágono informou mais tarde que foram disparados 105 mísseis e que a Síria disparou 40 em tentativas de os travar, sem sucesso.
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“O risco de escalada é quase nulo”, garantiu no diário Le Monde Gilles Dorronsoro, especialista em guerras civis e um dos autores do livro Syrie, Anatomie d’une guerra civile. Os vários actores no conflito têm protectorados de facto em partes do território e não têm qualquer interesse numa “derrapagem”.

A Rússia, antecipam analistas, deverá ripostar de outros modos que não com acções militares na Síria: “Houve um aumento de 2000% nos trolls russos nas últimas 24 horas”, disse a porta-voz do Pentágono Dana White. Entre as linhas de propaganda está que o ataque foi levado a cabo para “apagar as pistas da falsificação do ataque com gás em Douma”, como disse Leonid Slutski, responsável da comissão parlamentar de assuntos externos, citado pela Al-Jazira.

Opositores e apoiantes de Bashar al-Assad fizeram-se ouvir. No diário francês Libération, Karam al-Masri, fotógrafo que cobriu a batalha de Alepo no final de 2016, comentou em tom crítico que “a declaração de Trump na televisão durou mais do que os ataques”. Em Damasco, houve manifestações em locais centrais como a Praça dos Omíadas “em desafio à agressão” dos três aliados.

As palavras, ou melhor, alguns tweets de Trump, tinham levado a especulação sobre se o ataque poderia incidir sobre alvos militares do regime – a sua aviação, que é o ponto forte, e que é usada para ataques convencionais e não-convencionais. Macron sempre falou em alvos ligados à capacidade de usar armas químicas, por isso não é surpresa que os locais estivessem vazios e não tenha havido vítimas inesperadas entre forças aliadas ou civis.

Aaron David Miller, que foi negociador para o Médio Oriente de administrações tanto democratas como republicanas, sublinha que analisando o uso de força militar por Trump desde 2017 se vê que há “aversão ao risco” e que “palavras irresponsáveis não são seguidas de acções irresponsáveis”.

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Na única vez que Donald Trump agiu na Síria em resposta a um ataque químico de Assad, no ano passado, foram lançados 59 mísseis Tomahawk que destruíram uma pista e parte do hangar de uma base aérea. Esta foi rapidamente reconstruída e a base voltou a estar operacional: o ataque foi considerado simbólico. Desta vez o ataque envolveu mais actores, mais alvos, e um poderio militar maior, com 105 mísseis sobre três locais.

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“Apesar de todo o aparato destes ataques, o seu efeito é uma palmada na mão de Bashar al-Assad”, diz o analista Nicholas Heras. O que aconteceu no ano passado poderia dar força a esta opinião, já que houve relatos do uso de armas químicas pelo regime de Assad.

Aaron David Miller não está tão certo, sublinhando a destruição de alvos importantes para a capacidade de produção de armas químicas do regime. Em aberto fica a questão de qual será o efeito sobre o regime em relação a uma decisão de voltar a atacar com este tipo de armas, diz.

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