O professor que tentou mediar o conflito israelo-palestino e acabou negociando o fim do ETA

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Homem retira grafite que diz 'Obrigado, ETA'Direito de imagemREUTERS
Image captionHomem retira grafite que diz ‘Obrigado, ETA’; grupo separatista anunciou sua dissolução em maio

Enquanto boa parte dos membros do grupo separatista basco Euskadi Ta Askatasuna, mais conhecido pela sigla ETA, cumpre condenações na prisão ou foge dos holofotes na busca pelo anonimato, coube a um grupo de especialistas sorridentes anunciarem, no início de maio, a dissolução da organização.

Mais do que porta-vozes, eles participaram, desde 2011, de um grupo formado pelo advogado sul-africano Brian Currin para mediar negociações de paz do ETA. Entre eles, estava o uruguaio Alberto Spektorowski, 66 anos, hoje morador e cientista político em Israel, onde é professor da Universidade de Tel-Aviv.

Mas os conflitos envolvendo o ETA, um dos marcos mais recentes do nacionalismo e do terror vividos na Europa, não foram a estreia de Spektorowski em negociações envolvendo partes de contendas centrais para a política internacional.

Por anos, ele participou também de mediações anteriores e posteriores à Cúpula de Camp David, em 2000, da qual participaram os então líderes Bill Clinton (EUA), Ehud Barak (Israel) e Yasser Arafat (Palestina). O encontro foi uma entre muitas tentativas fracassadas de acordos entre Israel e Palestina, e o uruguaio participou como assistente político do então ministro de Relações Exteriores de Israel, Shlomo Ben-Ali.

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Em entrevista à BBC Brasil por telefone, Spektorowski contou como foi estar na linha de frente de duas das mais importantes negociações no cenário internacional. O cientista político detalhou também o seu trabalho como professor universitário – aquela que considera, na verdade, a sua ocupação principal, permeadas por mediações que seriam pontos fora da curva. O seu interesse acadêmico é antigo e permeia com força o noticiário internacional recente: os nacionalismos na Europa.

‘Pista de aterrissagem’

A linha de estudo acabou levando-o ao Grupo Internacional de Contato, que mediou a dissolução do ETA. Isto porque ele acumulava conhecimento sobre a política basca, seu principal cenário de atuação durante as negociações.

Sua função foi dialogar com partidos do País Basco, como o Sortu, considerado – apesar de algumas tentativas de distanciamento – o herdeiro ideológico do ETA.

O cientista político Alberto SpektorowskiDireito de imagemAFP
Image captionPara Spektorowski, entendimento entre Israel e Palestina se tornou mais difícil nos últimos anos

“Sentíamos que éramos como uma pista de aterrissagem para o ETA. Medíamos a iniciativa deles possibilitando um respaldo da comunidade internacional”, explica Spektorowski.

Segundo o cientista político, praticamente não restavam membros do grupo separatista – então as conversas envolviam representantes de líderes presos e antigos membros.

Mas, se em 2011 o ETA já havia anunciado um cessar-fogo e, em 2017, ocorreu a entrega de suas armas, por que foi necessário anunciar o seu fim?

“O governo da Espanha já dizia: o ETA foi derrotado. O que é verdade. Mas, até que não se sinta isso, não há fim. Você pode ir à rua e, se houver um atentado reivindicado por uma pessoa que seja, não acabou. O País Basco quer ter a certeza de que o conflito terminou”, explica o professor.

A ferida continua aberta e a dissolução, acompanhada por um pedido de desculpas do grupo às vítimas pelo “sofrimento desproporcional” causado, foi recebida com reserva – quando não com crítica – por outras partes do conflito. Em cerca de quatro décadas, o ETA matou mais de 800 pessoas e feriu outras milhares.

A Associação das Vítimas do Terrorismo espanhola afirmou, em nota, que a sinalização do ETA foi uma forma de “manipular a história”, “varrendo o seu passado criminal”. Já o premiê da Espanha, Mariano Rajoy, destacou que a dissolução não impediria os esforços para “perseguir e punir” os crimes praticados.

Os ruídos no diálogo permanecem e, segundo Spektorowski, estarão presentes nos próximos passos que ainda envolverão o ETA.

“Há o problema de o que acontecerá com os prisioneiros do grupo. Eles pedem para ficar mais próximos do País Basco. Esse foi outro ponto importante das negociações, porque a partir do momento em que não há mais a organização terrorista, as políticas penitenciárias podem ser ajustadas”, explica o cientista político.

Grupo de especialistas que mediou dissolução do ETA; entre eles, estão Alberto Spektorowski (primeiro à esquerda) e Brian Currin (com prancheta na mão)Direito de imagemAFP
Image captionGrupo de especialistas mediou dissolução do ETA; entre eles, estão Alberto Spektorowski (primeiro à esquerda) e Brian Currin (com prancheta na mão)

Camp David

Apesar da sensibilidade em comum entre os episódios envolvidos, Spektorowski não vê muitas semelhanças entre sua experiência com o ETA e as malsucedidas negociações em Camp David.

“Com os palestinos, as duas partes da disputa conversavam uma com a outra. No caso do ETA, tivemos um princípio de conexão com o governo espanhol. A primeira interlocução foi com o Partido Socialista. Mas, com sua saída do governo e ascensão do Partido Popular (do atual premiê Rajoy), não houve mais nenhuma interlocução. O processo passou a ser unilateral. Sabíamos que o governo do Partido Popular não ia fazer absolutamente nada a esse respeito”, explica.

O acadêmico não discute que as negociações em Camp David foram fracassadas. Na ocasião, o premiê israelense Barak ofereceu devolver aos palestinos a faixa de Gaza e 95% da Cisjordânia. Dois pontos de desentendimento (que permanecem latentes até hoje) foram Jerusalém e o retorno de refugiados palestinos a seus lares originais.

“Não posso classificar de qualquer outra forma (senão como um fracasso). Fizemos oferecimentos, mas os palestinos perderam o que podemos chamar de timing. Avaliaram que era pouco e que em outro momento poderiam obter vantagens melhores. Que o tempo jogaria a favor deles”, opina.

“Não digo que o que oferecemos era tão bom que eles foram tolos de não aceitar. Mas era o melhor que um governo de Israel podia propor. Nesse momento (com a recusa da oferta), passamos para um outro estágio, que parece muito pior para os palestinos”.

Menino caminha ao lado de pichações com as letras ETADireito de imagemAFP
Image caption‘O ETA quis deixar a cena, mas fazê-lo ganhando o máximo possível com esta saída’, diz cientista político

Hoje, ele diz não ver saídas para o conflito entre Israel e Palestina, cujas negociações de paz estão paradas desde 2014. Perguntado se isso poderia ser atribuído a figuras políticas linha-dura envolvidas hoje na contenda, como o premiê de Israel, Benjamin Netanyahu, o cientista político diz que sim.

“Netanyahu não está interessado em nenhum acordo de paz minimamente aceitável para os palestinos. E os palestinos estão sem ter para onde ir, sem ter o que fazer. Entre as partes, não há hoje outra possibilidade além do conflict management (gestão de conflito, em tradução livre). E, se a questão dos territórios (ocupados por Israel e reivindicados pelos palestinos) entrar na questão, isso também acabou”.

“Mas o Hamas (grupos islâmico que administra a faixa de Gaza) nunca fará isso (abdicar de seu modelo de ação). É o seu sentido de vida”.

‘Populismo-pós-histeria’

Mas, para o uruguaio, as experiências com o ETA e o conflito entre Israel e Palestina são pontos fora da curva na sua trajetória como professor universitário. Spektorowski não se considera um negociador, atividade à qual se dedicou apenas em situações pontuais e “ad hoc”.

Estudar os nacionalismos europeus, isto sim, tem sido centro de sua atenção por “muitos anos”, como diz. E os últimos anos, em que a ascensão do populismo é vista pelos quatro cantos do mundo, têm coroado seu objeto de estudo.

Muro divide territórios em IsraelDireito de imagemGETTY IMAGES
Image captionSpektorowski aponta que, na disputa entre Israel e Palestina, perspectivas pioraram

Spektorowski agora propõe o conceito de “populismo-pós-histeria” para entender as perspectivas futuras para a Europa, em que o liberalismo – termo usado pelo cientista político no sentido americano, remetendo à ideologia de esquerda – terá que se rever com suas próprias falhas.

“O ‘populismo-pós-histeria’ é uma forma de dizer que o populismo não vai dominar o poder, mas redefinirá o centro (do espectro político) – levando-o mais à direita em assuntos de identidade, por exemplo. Para a pauta econômica, ainda não se sabe, mas para questões de identidade, eu diria que toda a Europa vai em direção à direita. Os partidos de centro, para atrair os votos do populismo, têm que se fazer um pouco populistas. E o liberalismo pró-minorias será afetado. A tese de Merkel (Angela Merkel, chanceler alemã moderada e favorável a migrantes), aparentemente, não será a tese ganhadora”, aponta.

“Se considermos os últimos 30, 20 anos, em que eram dominantes as políticas do multiculturalismo, de um liberalismo muito a favor das minorias, penso que isto será muito mais limitado”.

E de onde vem o “histeria” do conceito?

“A qualquer conferência que você vai, os liberais estão histéricos com o populismo. Falam no fim da democracia de Trump, da Hungria… Estão todos histéricos. E o liberalismo merece cada centímetro disto”, critica.

“O socioliberalismo, em vez de dedicar-se a problemas de distribuição de renda, se contentou com o sistema neoliberal com um pensamento de que ‘é assim que as coisas são’. Enquanto isso, passou a se dedicar às políticas de identidades. O liberalismo não entendeu que, quando você entra no jogo das políticas identitárias, você entra no campo da direita. Aparece, então, a identidade branca, e a direita conduz isso muito bem”.

Para alguém que lidou com a busca por conciliação na prática e com os jogos de poder na teoria, o mundo se tornou mais hostil ao diálogo.

“Está cada mais difícil (o diálogo). Mas não somente entre partes opostas… Nas sociedades ocidentais, com a ascensão do populismo, o consenso no próprio sistema político está se complicando.”