“A SENSAÇÃO É DE QUE VOCÊ VAI MORRER PORQUE A LAMA ESTÁ CHEGANDO”, CONTOU MORADORA DE ITABIRA QUE OUVIU ALARME FALSO SOAR

“A SENSAÇÃO É DE QUE VOCÊ VAI MORRER PORQUE A LAMA ESTÁ CHEGANDO”, CONTOU MORADORA DE ITABIRA QUE OUVIU ALARME FALSO SOAR

Na cidade onde a Vale nasceu, moradores viveram momentos de desespero quando sirenes recém-instaladas dispararam como se barragem tivesse rompido
Em Itabira, Minas Gerais, a mineradora Vale tem 15 barragens Foto: DEA / PUBBLI AER FOTO / De Agostini/Getty Images
Em Itabira, Minas Gerais, a mineradora Vale tem 15 barragens Foto: DEA / PUBBLI AER FOTO / De Agostini/Getty Images

Em 1948, “Lira itabirana”, o famoso poema de Carlos Drummond de Andrade que diz que o rio é doce, e a Vale amarga, já versava sobre a relação da cidade do interior de Minas Gerais e a gigante da mineração. Foi em Itabira, seis anos antes, que a Vale nasceu. Nasceu e se criou: a empresa tem ali 15 barragens. Duas delas, a de Itabiruçu e a do Pontal, estão entre as maiores barragens de rejeitos de minérios do Brasil. Não à toa, quando as sirenes de emergência — instaladas dias antes — tocaram na cidade, na última quarta-feira (27), os moradores viveram momentos de desespero.

Maria Clara Moreira, de 20 anos, cresceu no bairro da Praia, a pouco mais de seis quilômetros da barragem de Pontal e a pouco mais de 10 quilômetros da barragem de Itabiruçu. Fazia calor na noite de quarta-feira, e, não fosse estar na varanda de sua casa, ela não teria ouvido o despertar das três sirenes que foram instaladas nas proximidades na semana anterior. “O som não era muito alto, então muita gente da rua não percebeu. A gente que percebeu e foi avisando. Aí foi um terror”, contou. Além da instalação das sirenes a Defesa Civil da cidade havia colocado na região placas com orientação e rotas de fuga em caso de rompimento das barragens da cidade. O ponto de encontro indicado, contou Moreira, fica na rua lo acima de sua casa. “Não chegamos a ir para lá. Ficamos na rua, todo mundo apavorado. A gente ficou sem saber o que estava acontecendo”, relatou. Em vão, tentaram ligar para órgãos públicos da cidade — Defesa Civil, Polícia Militar, o SAMU. Não conseguiram falar com ninguém.

Do outro lado da cidade, o administrador público Gabriel Quintão, de 20 anos, tentava ligar para o número de emergência da mineradora, sinalizado nas placas de rota de fuga. “O 0800 só funciona das 8h às 11h30 e das 12h30 às 16h. Dessa vez, era alarme falso. Mas, será que se um dia for verdade, a barragem vai obedecer o horário de funcionamento da Vale?”, questionou. Quintão voltava da faculdade quando se viu obrigado a parar o carro para responder às dezenas de alertas de mensagens e ligações. “Comecei a ver nos grupos da cidade que a sirene estava tocando. Não era em uma só região. As sirenes de vários bairros estavam tocando”, contou. Morador do bairro da Praia, ele tentou falar com a mãe, que dormia em casa. Quando Quintão chegou, ela continuava dormindo — não tinha ouvido o alarme, que tocava baixinho. “Na rua, estava tudo deserto. O posto policial que está sempre com a luz acesa, estava vazio. O posto de gasolina estava fechado, as luzes da rua estavam apagadas. Parecia que a cidade tinha acabado”, explicou.

Aos poucos, nos mesmos grupos em que se deram os alertas sobre a sirene, começou a circular a informação de que ela havia sido disparada por engano. Mal o pânico passou, cerca de quarenta minutos depois, o alarme voltou a soar. “Foi aquele pânico novamente. A Vale colocou em seu site uma nota sobre o alarme falso. Mas ninguém vê o site da Vale”, disse. “Por volta da meia-noite um vereador e presidente do sindicato dos trabalhadores da mineração da cidade divulgou, pelo Whatsapp, um áudio do gerente executivo da Vale em Itabira, Rodrigo Chaves, afirmando que o que houve foi um ‘desacerto técnico’”, contou Quintão.

O anúncio não tranquilizou ninguém. “Eu não dormi à noite. A sensação é de que você vai morrer, que a lama está chegando. Eu fiquei imaginando, será que é verdade que foi um erro? Será que eles estão tentando enganar a gente?”, disse Moreira. Outro temor, segundo ela, era de que a sirene tocasse novamente mas ela não pudesse escutá-la. “Tocou muito baixo. Será que vai funcionar quando precisar? Muita gente que já estava dormindo, muitos idosos e pessoas com deficiência não escutaram. Deveria ser algo mais seguro”, opinou.

Quintão conta que passou a infância em uma casa que dava de frente para a serra que “segura” a barragem do Pontal. “Eu me lembro de ver a água saindo pelos tubos quando a barragem enchia, mas a gente nunca se perguntou se aquilo era seguro ou não. Em Itabira, a Vale sempre foi a empresa mais segura do mundo”, disse. “Agora, eu vejo as barragens como bombas-relógio.”

Itabira tem cerca de 125 mil habitantes. Entre eles, 15 mil estão em zonas de autossalvamento, regiões em que se considera não haver tempo suficiente para uma intervenção das autoridades competentes em caso de acidente. Os moradores nunca passaram por nenhum tipo de simulação ou treinamento de emergência. As barragens foram construídas com o método mais seguro, a jusante, e são classificadas como de baixo risco. “Se eu pudesse me mudar daqui, eu me mudaria, porque é terrível. Depois que começaram as fiscalizações e vimos esse monte de barragem no nível 3 de risco de rompimento, a gente fica apreensivo”, disse Maria Clara Moreira. “Quem vai garantir que estamos seguros? A Vale? A Vale garantiu que outras barragens estavam seguras e não estavam.”

Sentindo-se desamparados, os moradores começam a articular entre eles planos de fuga em caso de emergência. “A Defesa Civil nos entregou um mapa com a rota de fuga. Em certo ponto, nos dizia para virar à direita. As placas do local, no entanto, nos mandam ir reto ou voltar. Se fosse uma situação real de risco, muita gente teria morrido”, disse Quintão. “Aqui no meu condomínio, fizemos um plano. Caso haja rompimento, corremos em direção ao salão de festas, e vamos deixar uma escada lá para pularmos para a rua de cima. Não quero correr o risco de encarar a lama de frente.”

Não foi o primeiro disparo errôneo de sirenes de alerta pela Vale. No dia 22, quando a mineradora acionou as sirenes em Barão de Cocais — local em que uma barragem entrou em alerta máximo para risco de rompimento —, os alarmes foram disparados por engano também em São Gonçalo do Rio Abaixo. No dia 27, três barragens em Minas Gerais, a B3/B4, em Macacos, e as Forquilhas 1 e 3, em Ouro Preto, também entraram em alerta máximo.

Em seu site, a mineradora divulgou uma nota: “A Vale informa que na noite desta quarta-feira (27/03), foi disparado um sistema de alerta em Itabira. O acionamento em Itabira foi um desacerto técnico. Portanto, não há situação de emergência nessa localidade e nem necessidade de que as comunidades da região sejam evacuadas. Assim que a situação foi identificada, a correção foi imediatamente feita pela área técnica A Vale reitera que não houve alteração no nível de segurança das barragens de Itabira e que os moradores da cidade podem manter a tranquilidade.”

A ÉPOCA, em nota, a empresa afirmou que de 27 de fevereiro até a última sexta-feira (29), cem profissionais das áreas de humanas e sáude percorreram cerca de 5.200 imóveis para orientar os moradores de Itabira sobre procedimentos de segurança a ser seguidos no caso de rompimento de barragem. “Esses locais estão nas Zonas de Autossalvamento (ZAS) de 11 estruturas da Vale no município que possuem Plano de Ação de Emergência de Barragens de Mineração (PAEBM). Durante as abordagens, a equipe entregou materiais com mapas da região com indicação das rotas de fuga e dos pontos de encontro, apresentou o som e a mensagem das sirenes, além de divulgar telefones de contato da Vale e da Defesa Civil. Durante esse período, a Vale também instalou 93 placas de sinalização de rotas de fuga e pontos de encontro no município”, disse a mineradora. A Vale também destacou que a ação tem caráter preventivo. “A ZAS é a região a jusante da barragem, cuja distância pode ser considerada em cerca de 10 quilômetros, na qual os avisos de alerta à população são da responsabilidade do empreendedor, sendo, portanto, prioritária numa emergência. Em breve, a Defesa Civil, com apoio da Vale, realizará simulados de emergência com a população da ZAS.”

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