Quarenta e seis anos depois, a vietnamita que comoveu o mundo quer que sua foto contribua para a paz

Quarenta e seis anos depois, a vietnamita que comoveu o mundo quer que sua foto contribua para a paz

Kim Phuc Phan Thi , fotografada ainda criança correndo depois da explosão de bombas na Guerra do Vietña, quer curar o futuro

POR KIM PHUC PHAN THI, EM DEPOIMENTO A RUAN DE SOUSA GABRIEL

A vietnamita Kim Phuc Phan Thi com seu filho Thomas, em 1994, no Canadá, onde vive. Ela passou por 17 cirurgias para tratar as queimaduras de napalm – Anne Bayn / Divulgação

Naquele dia 8 de junho de 1972, nós estávamos escondidos no templo. O Vietnã estava em guerra, mas minha mãe imaginou que num lugar sagrado e assistidos por soldados estaríamos seguros. Eu tinha 9 anos e não conseguia pensar em nada. Estava muito assustada. Eu me lembro de ver o avião se aproximando de nós. Depois, paralisada de medo, vi as bombas caírem e ouvi o estrondo. Vi o fogo a meu redor. Eu nunca tinha ouvido falar em napalm antes. Ele tem uma consistência pegajosa que adere à pele humana e a transforma em cinzas — queima a 1.200 graus célsius. Eu saí apavorada pela estrada, correndo o mais rápido que podia. O fogo destruiu as roupas típicas que eu usava: uma blusa larga, parecida com uma túnica, e calças folgadas de algodão. Eu não imaginava que estava sendo fotografada. Mas Nick Ut (fotógrafo da Associated Press) me fotografou. A foto que ele tirou ali foi o começo de uma longa jornada para mim. Tirar fotos era seu trabalho, mas ele fez mais do que isso. Largou a câmera e me levou para o hospital mais próximo. Sou muito grata a ele, a quem chamo de Tio Ut. Ele se tornou parte de minha família, e nós temos uma relação maravilhosa até hoje. Conversamos sempre. Tio Ut me ama como se eu fosse sua filha. Ele tirou uma bela foto, não é?

Só vi esse registro muito tempo depois. Passei 14 meses no hospital, tratando as queimaduras. Quando voltei para casa, meu pai me mostrou a foto, recortada de um jornal vietnamita: “Aqui está sua foto, Kim”. Olhei a foto e, meu Deus, como fiquei envergonhada! Como eu estava feia! E pelada! Todos estavam vestidos, e eu, uma menina, estava sem roupa. Vi a agonia e dor em meu rosto. Fiquei com raiva. Por que ele tirou aquela foto de mim? Era melhor não ter tirado nenhuma! Eu era só uma criança, mas tinha de lidar com muita dor. Quanto mais famosa a imagem ficava, mais eu precisava encarar minha tragédia.

A foto voltou a me atormentar em 1981, quando eu tinha 19 anos. A guerra já havia acabado. Eu estava terminando a escola e tinha um novo sonho: ser médica. Jornalistas estrangeiros começaram a vir ao Vietnã atrás de mim. Queriam me entrevistar e me mostravam a foto e vídeos em que eu aparecia correndo na estrada depois da explosão da bomba de napalm. Percebi que minha foto era muito famosa. Quando eu era criança, tinha vergonha de minhas cicatrizes, mas aprendi a aceitá-las. Eu só queria seguir em frente e realizar meu sonho de ser médica, mas o governo vietnamita me descobriu e não me deixou mais em paz. Foi um período terrível em minha vida. Eu esperava que usassem minha foto para conscientizar as pessoas dos horrores da guerra, mas por que não me deixavam em paz? O governo queria que eu fizesse propaganda do regime comunista e o ajudasse a culpar os Estados Unidos por nossas desgraças. Eu nunca quis — e até hoje não quero — me envolver em política. Só quero fazer o que meu coração manda: lutar pela paz em nome das crianças e vítimas de guerra. Se querem falar de política, procurem outra pessoa.

Em 1972, aos 9 anos, Kim Phuc Phan Thi corre depois da explosão de bombas de napalm durante a Guerra do Vietnã. Nos anos 80, o governo vietnamita tentou se apropriar da foto para fazer propaganda do regime – Nick Ut / Glow Images

Quanto mais famosa ficava a foto, mais alto era o custo para minha vida privada. Queria ser livre, mas o governo me controlava. Eu me converti ao cristianismo em 1982 e, de lá para cá, sinto-me espiritualmente livre. Enquanto vivesse no Vietnã, no entanto, não conseguiria ser completamente livre. Estudando em Cuba, meu marido e eu conseguimos autorização do governo vietnamita para passar nossa lua de mel em Moscou, mas fizemos uma escala no Canadá e ficamos por aqui. Hoje sou embaixadora da Boa Vontade da Unesco e trabalho em minha fundação, a Kim Foundation International. Temos vários parceiros ao redor do mundo e queremos ajudar crianças vitimadas pelas guerras. Construímos hospitais, abrigos, orfanatos e escolas. Trabalhamos pela cultura da paz. Quero difundir a paz, a alegria e o perdão, que são armas muito mais poderosas do que as bombas. Por isso escrevi A menina da foto — Minhas memórias: do horror da guerra ao caminho da paz(editora Mundo Cristão).

Por causa das queimaduras de napalm, passei por 17 cirurgias. Há alguns anos, fiz um tratamento a laser muito doloroso, mas que me ajudou muito. Sinto menos dor e meus movimentos melhoraram. As cicatrizes estão mais suaves. Há em meu livro uma foto em que seguro meu filho Thomas nos braços, quando ele ainda era um bebê. Dá para ver minha pele coberta de cicatrizes e a pele perfeita dele. Estou sorrindo na foto e meus lábios estão bem perto da orelhinha de Thomas. Ele não olha para mim, mas para a frente. Gosto de pensar que sussurro em seu ouvido que devemos ser gratos pela paz. E que ele olha para o futuro. Quero mostrar as duas fotos ao mundo: minha foto aos 9 anos correndo do napalm e minha foto com Thomas. Quero que elas transmitam paz e alegria e ensinem que perdoar é possível. A menina da foto conseguiu perdoar. Quero que essas duas fotos nos lembrem de que não podemos mudar o passado, mas, com amor, podemos curar o futuro.

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