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Ioiô Benedito, que transformou um desafeto em verdadeiro irmão

Ioiô Benedito, que transformou um

desafeto em verdadeiro irmão

 

Liberato Póvoa

 

No dia 19 de janeiro último, Dianópolis em peso se reuniu para celebrar o centenário do massacre ocorrido em 1919, quando nove pessoas foram brutalmente assassinadas num velho sobrado da antiga Vila de São José do Duro, como magistralmente narrado pela ficção de Bernardo Élis  (“O Tronco”) e pela história (“Quinta-feira sangrenta”) de Osvaldo Póvoa.

Os nove mártires, que, na verdade eram dez, foram mortos presos ao velho tronco. (pois o jovem Oscar, apesar de não ter estado no velho sobrado preso ao tronco, foi assassinado na mesma data pelo alferes Catulino Viegas num dos quartéis-generais da tropa).

Dentre os ergastulados no velho tronco de castigar escravos (todos inocentes e tomados como reféns apenas por serem amigos dos Wolneys) estava meu avô, Benedito Pinto Cerqueira Póvoa (que Bernardo Élis cognominou de “Joaquim Alves Leandro”, mudando apenas o nome por razões de não melindrar parentes ainda vivos dos personagens, mas conservando magistralmente todas as suas características).

As presepadas de meu pai, suas brincadeiras e seu humor espontâneo não começaram nele: seu pai, ioiô Benedito – contam os mais velhos, pois ele  morreu 25 anos antes de eu nascer – era o tipo bonachão, cheio de prosa e xingador. Conversava alto; andava xingando os outros, não com o intuito de ofendê-los, mas por força de seu temperamento aberto e espalhafatoso. Às vezes, ia com a família todinha hospedar-se em casa de parentes ou amigos na vila (naquele tempo, era tudo vila; cidade, só no Sul), e era useiro e vezeiro em pregar peças e deixar os menos acostumados com seu jeito em situação difícil: sisudos anfitriões ficavam sem graça quando meu avô saía com uma de suas tiradas:

– Cê precisa dar de comer esses meninos magros, Fulano!  Deixe de ser miserável, homem!

Muitas vezes, convidava os mais influentes da Vila de São José do Duro para almoçarem com ele na fazenda Prazeres, onde morava.  Mas nada avisava a minha avó, iaiá Amélia. No dia aprazado, logo cedinho, ele dizia:

– Amélia, faça aí um cirigadinho ligeiro, que vou fazer uma viagenzinha, mas volto de tarde! – e arreava sua mulona, escanchava e ganhava a estrada.

Lá para as dez horas, chegava a caravana e, para espanto de minha avó, descia o farrancho todo, apeava na maior intimidade, uns afrouxando a cilha dos arreios, outros trazendo já os pelegos e coxonilhos para dentro.

Tão indo pra Sicupira, minha gente? – indagava minha avó.

O pessoal entreolhava-se sem entender a justificada ignorância de minha avó, e um dos mais íntimos se adiantava:

– Uai, Amélia, o Dito nos chamou pra almoçar aqui hoje…

Ela botava as mãos na cabeça:

– Esse Dito não se corrige!  Sempre fazendo das suas – e desdobrava-se com a criadagem no preparo do almoço, matando leitoa e frangos capões que sempre mantinha no ceveiro.

Na hora em que o pessoal estava todo em redor da mesa comendo, chegava ioiô Benedito, fazendo o maior espalhafato do mundo, rindo das expressões de desconcerto dos convidados.

Assim era meu avô, de quem meu pai e principalmente meu irmão Nélio herdaram todas as patacoadas.  Mas não era só isso.

Fazendeiro, todo ano tocava boiada para vender na Bahia.  E uma ocasião, na época da seca braba, ele chegou a uma fazenda nos sertões de Jacobina, com seu gado estropiado e morto de sede.  Procurou o dono da fazenda, que estava no terreiro queimando beijus de bosta de gado seca para espantar muruim. Falou em alugar um curral para o gado passar a noite, pois era bem riscoso a boiada arrancar-se, ficando solta e apenas pastoreada pelos peões.  Mas o homem nem deu ligança, e ainda lhe disse umas prosas: que não vivia de aluguei, que isto, que aquilo.

Ioiô Benedito não criou caso, pois, apesar de espalhafatoso, era de muita paz e sempre preferia uma boa avença. E mandou que a peonagem acendesse fogueiras ao redor da boiada para prevenir  que alguma rês se desgarrasse. Passaram a noite em claro, enquanto meia dúzia de vaquinhas mirradas do homem ocupavam um curralzão vazio. Por milagre de Deus, não sumiu nenhum boi.

Vai daí que, estando meu avô na fazenda Prazeres, tempos depois, avistou uma boiada que adentrava o vaquejador, ao som do berrante.  Quando a gadama aprochegou no pátio, um cavaleiro se destaca do grupo de peões e toma chegada.

– Boa tarde! – salvou o chegante.

– Tarde!  Vamos desarreando, amigo! – meu avô respondeu, com a mão em pala sobre os olhos, para melhor divulgar contra o sol vespertino.

Ao grelar o olho em meu avô, o chegante quis refugar o arrancho, meio sem graça: era o tal que lhe negara curral lá em Jacobina.  Mas ioiô Benedito, todo bonachão, fez de conta não ter reconhecido o homem e deixou-o a vontade. Mandou desocupar o curral, que batia chifres, de tanto gado, pois naquele dia juntara uma boiada para levar à Bahia, como fazia todo ano.

– Mas, “Seo” Benedito, o senhor tá desocupando seu curral?…

– Curral é feito é pra gado, homem de Deus!  Se apoquente não! Se precisar de mais espaço, mando o resto de seu gado pro curral de Chicada, aqui pertinho! – e soltou seu gado na manga de pasto, esvaziando a curralama pro chegante, àquela hora todo sem graça, agasalhar sua boiada.

O homem foi tratado com fidalguia, jantar abundante para a peonagem toda, arranjou dormida, e de manhã só saiu após quebrar o jejum com requeijão, cuscuz e leite farto.  Na hora de sair, quando meu avô recusou qualquer pagamento, o homem, todo desacorçoado, deu a mão à palmatória e pediu-lhe desculpas pelo que fizera no sertão de Jacobina.  Meu avô, mordendo a ponta dos bigodes que lhe desciam até aqui assim, no canto da boca, respondeu calmamente:

– Não foi nada não. É que aqui no Goiás a gente quer curral é pra botar gado dentro, e não como na sua terra, que o senhor quer curral é pra botar sua mãe, seu fidumaégua!

Segundo meu pai, a homem aceitou o xingamento sem dizer palavra.  E tornaram-se amigos íntimos, a ponto de um ir com a família para a casa do outro passar temporadas, quando a história do curral era motivo de sonoras gargalhadas.

E quando meu avô foi morto pela Polícia goiana no episódio que Bernardo Elis descreve magistralmente em “O Tronco”, aquele amigo, conquistado de modo tão inusitado, botou luto fechado por muito tempo, como se fosse um irmão.

 

(Publicada no “Diário da Manhã” de 07/01/2019)

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